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Anotações

Daniel Henriques Lourenço ANOTAÇÕES LIVRO DE URÂNTIA, ETC RIO DE JANEIRO 2012           RESUMO  Continuação de um trabalho anterior, o presente analisa ainda a teoria do direito do filósofo Eric Voegelin apresentada em sua obra “A Natureza do Direito”, mas vai além. Tratar-se-á de temas que extrapolam o fenômeno jurídico e que ajudam a jogar-lhe luz. Mas a intenção não foi conectá-los com o direito, foi abordá-los com a dignidade intrínseca que possuem e espanta o espectador. Assim, temas que o trabalho anterior apontava como percursos naturais são aqui estudados. Palavras-chave: Livro de Urântia –Filosofia do Direito – Voegelin – Platão – Aristóteles – Olavo de Carvalho – Mário Ferreira dos Santos – Filosofia da história – Ética. ABSTRACT  Continuation of a previous essay, the present one analyzes yet the  law theory of philosopher Eric Voegelin presented in his work “The Nature of the Law”, but goes beyond. It will approach themes that extrapolate the juridical phenomenon and assist us throwing light over it. But our intention was not connect them with the law, it was to treat them in their own right and dignity, which admires the spectator. Therefore, themes that the previous work appointed as natural courses are here studied. Keywords: Urantia Book –Philosophy of Law – Voegelin – Plato – Aristotle – Olavo de Carvalho – Mário Ferreira dos Santos – Philosophy of history – Ethics. “O homem não pode esperar viver à altura dos seus ideais mais elevados, mas pode ser fiel a seu propósito de buscar a Deus e tornar-se mais e mais como Ele.” (Livro de Urântia)

Índice

Introdução…………………………………………………………………………………………………………. Livro I I Essência do direito…………………………………………………………………………………………… II Substância e existência…………………………………………………………………………………….. III O Problema Zenônico……………………………………………………………………………………… IV A Hierarquia de Leis Válidas, O Processo Legislativo e A Ordem da Sociedade como um Todo.         V O Direito como a Substância da Ordem. O Processo Legislatório como Instrumento para Assegurar a Substância………………………………………………………………………………………………………………………….. VI Construções Teoréticas da Relação…………………………………………………………………… VII Estrutura, Continuidade e Identidade do Complexo da Ordem………………………….. VIII A Luta de Aristóteles com o Problema da Identidade. ……………………………………. IX As Questões Tangentes do Direito Constitucuional……………………………………………. X A Regra e a Duração da Ordem………………………………………………………………………… XI O Dever no Sentido Ontológico………………………………………………………………………. XII A Regra enquanto Norma………………………………………………………………………………. XIII Haverá também uma correlação entre a teoria tridimensional do direito e a trinca experiência, valor e significado, comentada no Livro de Urântia?…………………………………………………………………… XIV O Caráter Público da Norma Legal………………………………………………………………… XV Os Dois Tipos de Projetos…………………………………………………………………………….. XVI Os Processos Legislatórios Empírico e Filosófico……………………………………………… XVII A Sociedade como uma Entidade Auto-Organizadora…………………………………….. XVIII A Representação da Sociedade……………………………………………………………………. XIX O Cálculo do Erro…………………………………………………………………………………….. XX O Uso da Força…………………………………………………………………………………………… XXI Os Componentes de Validade………………………………………………………………………… XXII A Ordem Jurídica e a Sociedade Histórica Concreta………………………………………… XXIII Conclusão………………………………………………………………………………………………. Livro II  XXI A diferenciação do mito em filosofia………………………………………………………..  XXV A Lei Mosaica………………………………………………………………………………………….  XXVI Profecia e Ação Histórica…………………………………………………………………………..  XXVII Sociologia das castas…………………………………………………………………………………..  XXVIII Que é a política?……………………………………………………………………………………..  XXIX Que é o direito?………………………………………………………………………………………  XXX Filosofia da história………………………………………………………………………………….. Livro III  XXXI Significados do termo justiça…………………………………………………………………………….  XXXII Natureza do contrato………………………………………………………………………………………  XXXIII Valores, Direitos e Pretensões …………………………………………………………………..  XXXIV A Teoria dos Quatro Discursos Aplicada ao Direito …………………………………… Referências Bibliográficas…………………………………………………………………………

“A liberdade é a dádiva da civilização, tornada possível por força da LEI.” O Livro de Urântia “Apesar de enfronhado na legislação, não tinha uma idéia das suas origens e dos seus fins, não a ligava à vida total da sociedade.”  Lima Barreto, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. “Pagans, Christians, and Jews carry out the commands of revelation long after these commands have ceased to be represented by a clergy.” Rosenstock-Huessy, Out of Revolution Advertência ao leitor: Pedimos desculpas, desde já, pelos evidentes erros de formatação acadêmica do trabalho. Tentamos nos adequar às normas, mas não contratamos especialista para realizar o trabalho.

I            Introdução

O trabalho anterior, do qual este é uma continuação, foi uma monografia para uma conclusão do curso de direito. Nele, procuramos resumir e trabalhar com o texto “The Nature of the Law”, do filósofo Eric Voegelin, à maneira de um comentário escolástico às obras aristotélicas. O final daquele trabalho apontava para três fontes principais do direito, quais sejam, a evidente vontade política, a filosofia e a Revelação. Faltou desenvolver estas fontes, em especial as duas últimas. A conclusão do trabalho, como será revisto aqui, era de que o direito é parte do esforço humano de construção da ordem, e portanto deve ser estudado lado a lado com esse esforço. Portanto, agora alargaremos o estudo para uma filosofia política, que era justamente o que aquele trabalho pedia, contando ainda, entre outros, com a preciosa contribuição de Voegelin, às vezes um Virgílio a guiar-nos pela seara da filosofia política e histórica, e sobretudo com os ensinamentos do Livro de Urântia. A primeira parte será, propriamente, uma reedição do anterior trabalho. O leitor companheiro que já o houver lido poderá, não obstante, relê-lo aqui com proveito, porque acrescentamos comentários a pontos que nos pareceram merecedores de ulteriores desenvolvimentos. Alguém poderá achar ainda que os temas poder e direito são ocasiões para falar de outros assuntos também, e não estará sem razão. O livro I pretende esmiuçar a teoria do direito de um dos mais capazes filósofos políticos do século XX, o alemão radicado nos Estados Unidos da América Eric Voegelin. Para tanto, além de resumir o livro que ele dedicou ao direito durante sua estadia na Universidade de Louisiana, onde, por ocasião do lançamento de “The Nature of the Law”, lecionava ciência do direito, compararemos como um adendo sua teoria sobre o direito com a de Hans Kelsen, com quem manteve debates profícuos. Voegelin inicia a análise da natureza do direito a partir do senso comum que a palavra traz, bem como a partir da linguagem utilizada diariamente pelos advogados e outros profissionais do direito e também da linguagem do homem comum a respeito do direito. Voegelin, entretanto, compartilha seu espanto sobre o fato de que tanto Aristóteles quanto Platão, os dois filósofos gregos a quem ele muito considera, não tinham uma filosofia do direito – tampouco John Rawls teria, a seu critério.[1] Pergunta-se ele se o direito não teria um status ontológico, e sendo assim, indaga das esperanças históricas de sistemas jurídicos que fundamentavam-se na idéia de um direito com conteúdo ontológico. O livro II tratará de temas que a conclusão do trabalho anterior, e do livro I do presente trabalho, sugere como caminhos de estudo; o direito cede espaço aqui a assuntos que o ultrapassam, como a filosofia da história. O livro III retoma temas variados do direito.

I         Essência do direito

Voegelin nota que embora nos refiramos ao direito no singular, existe uma pluralidade de ordenamentos jurídicos, o norte-americano, o brasileiro, o francês, etc. O conteúdo dos diferentes ordenamentos jurídicos não é igual. Quando o advogado se refere ao “direito”, provavelmente ele tem em mente a ordem legal concreta na qual está interessado profissionalmente e não o “direito” que enxergamos na pluralidade dos ordenamentos jurídicos, o qual o advogado chamaria de metafísico. A observação do modo com que a palavra direito é empregada será o ponto inicial de análise do problema de que o direito de uma determinada sociedade traz consigo a aspiração a uma “lei maior”. No direito do advogado profissional  toda lei é “essencial” enquanto possui relação com o caso disputado. O critério para distinção entre normas essencias e não essenciais é a qualidade “validade.” Portanto, ao menos num primeiro olhar, o “direito” deve ser abordado sob a luz da categoria validade ao invés da categoria essência. Não obstante, toda análise é uma busca pela essência, de modo que a análise terá atingido seu objetivo tão logo a experiência pré-analítica do fenômeno legal seja dissolvida em conceitos que se refiram a um essência. Se a análise começa pelo problema da validade, a observação inicial está incorreta, não a análise. O direito enquanto um agregado de leis válidas não é algo que tenha uma natureza. Natureza é um conceito aristotélico – referente ao pensador grego clássico Aristóteles – que significa um princípio intrínseco de movimento, aquilo que, em outras palavras, faz com que a coisa seja o que ela é. Seria um disparate supor que nossa experiência pré-analítica do direito seja uma ilusão, ainda que crer que essa experiência seja algo com um caráter ontológico seja uma ilusão. Com certeza o direito é alguma coisa, ainda que fique provado ser apenas um fragmento de uma entidade mais complexa. As dificuldades apresentadas portanto não apelam para o fracasso de nossa análise, mas, ao contrário, são um incentivo desde que bem compreendidas. Ao ponto que chegamos, a tentativa de encontrar a natureza do direito comparando os diversos ordenamentos jurídicos existentes, com a esperança de encontrar a essência num grupo que se repete, deve ser abandonada como um nonsense. Ainda que tal grupo existisse, não teria valor cognitivo, pois a validade de cada norma legal na ordem concreta é de algum modo da “essência da lei.” Ou seja, não é analisando o todo “ordenamento jurídico” que encontraremos a essência de lei, mas por via de cada lei em particular considerada como parte desse todo, e portanto dotada de validade, é que deveremos encontrar a essência do direito. Cabe aqui fazer a ressalva de que a essência do direito não deverá ser compreendida como a essência biológica, uma vez que o direito tem uma estrutura ontológica distinta, sendo antes um ser abstrato do que um ser real. A essência é um tema que tem chamado a atenção dos filósofos. Percebendo que os homens, as pedras, os cavalos, etc, têm, enquanto tais, um molde comum, Platão disse que as idéias de homem, de pedra, de cavalo, além de presentes nos entes individuais, têm uma realidade independente. Aristóteles chamou de essências ou formas as idéias platônicas. Mas disse que elas só existem nos seres individuais; inconcebível sua realidade fora deles, uma vez que precisariam ter, se assim fosse, suas próprias essências, numa progressão ad inifinitum. Platão confundiu modelo com essência. Claro, ele foi o primeiro a falar de essências, é normal que o primeiro a tratar de um assunto não chegue a discernir todos seus aspectos. A essência está no ente, mas o modelo não, o modelo é ele próprio um ente, que possui a mesma essência das suas cópias. Sendo assim, existir não é um acidente da essência, como disse Mário Ferreira dos Santos. Não, é essencial que a essência exista, seja no modelo, seja nas cópias que a partir dele são feitas. A essência ante rem e post rem só existe enquanto pensada. Esse est percepi (nesses dois casos). No primeiro, por quem pense em criá-la (antes de existir, o homem foi pensado por quem o criou), no segundo, por quem, uma vez criada, pense nela (pense no que significa ser homem; pronto, você está abordando, post rem, sua essência). Berkeley diria que a essência in re está sendo pensada por Deus, por isso existe. Se Deus parar de pensar nela, babau. Para ele, existir era ser percebido, qualquer fosse a ocasião. Não era nada bobo. A favor de Mário Ferreira, pode-se dizer que a essência meramente concebida, jamais realizada (uma idéia que foi descartada), não chegou a existir. Portanto, não é essencial que a essência, enquanto possibilidade não realizada (e apenas nessa condição), exista. Nesse caso, é essencial que ela não exista. Só não me pergunte onde está o modelo de homem. Dizer que ele é o primeiro humanoide jamais criado é uma conjectura.

II         Substância e existência

Não vamos atrás de uma definição nesse momento, pois definições chegam ao fim da análise, não no começo. O que nos interessa agora é a linguagem do dia-a-dia, que não sofreu ainda dos refinamentos analíticos, a linguagem em que os termos ainda têm sentido. Apenas através da linguagem cotidiana dos advogados podemos encontrar um guia para a solução de nossos problemas. Na linguagem cotidiana, dizemos que uma lei aprovada conforme o procedimento previsto na Constituição é válida. Antes de terem sido aprovadas, não eram válidas; se estão em conflito com estatutos anteriores, estes serão inválidos; se uma norma posterior entrar em conflito com a lei presente, esta se tornará inválida. Lex posterior derogat priori. A ordem legal, consistindo nestas leis válidas, parece ter uma dimensão temporal; parece ser uma entidade, no cômputo geral, que existe no tempo. O elemento de validade que se provou um obstáculo no início de nossa análise para desvelar a essência do direito talvez possa ser determinante em esclarecer seu modo de existência. Devemos partir da presunção de que as ordens jurídicas realmente existem. Existe uma ida e vinda de leis válidas, ou seja, as leis ganham e perdem validade continuamente. As ordens jurídicas mudam, porém não mudam todas suas partes de uma só vez; permanece, entre uma e outra mudança, um corpo imutável de leis razoavelmente grande de maneira que a identidade da ordem é preservada. A ordem jurídica do momento não dá lugar à outra, mas “muda.” O exemplo de Voegelin para demonstrar a permanência de uma coisa face às mudanças por que passa é a de uma pedra que é erodida pelo vento e pela chuva mas que reconhecemos como a mesma pedra se as mudanças forem devagar o bastante. No entanto, diz ele, se a pedra for atingida por um impacto súbito, de modo que seja quebrada em várias partes, tenderemos a nos referir a cada uma das partes como pedras em separado, ainda que nos lembremos de sua conexão com a pedra anterior. O caso do direito, diz Voegelin, é similar. Não podemos, entretanto, distinguir entre leis essenciais e não-essencias, uma vez que, se uma lei pertence ao ordenamento jurídico, e portanto tem validade, ela é, como já dissemos, “essencial.” Cabe, entretanto, fazer a pergunta: O que acontece com o ordenamento jurídico quando uma das leis que o compõe é invalidado por uma lei posterior? Ele continua sendo o mesmo ordenamento de antes? A resposta é inevitável: se identificamos o ordenamento jurídico como o conjunto de normas válidas, então todo e qualquer ordenamento que difira no que tange às partes que o compõe deve ser considerado um indivíduo distinto da espécie “ordenamento jurídico.” A todo momento que o Congresso aprova uma lei, o resultado será um novo ordenamento jurídico. Nenhum advogado aceitará esse veredicto como definitivo. Ele insistirá em que o direito pode mudar com a inserção de uma nova lei, porém o ordenamento jurídico é preservado mesmo pela entrada e saída de várias leis. Em face dessa insistência, entretanto, o filósofo também terá que ser insistente. O veredicto, de fato, é definitivo, porque é analiticamente necessário. O ordenamento jurídico que consiste numa sucessão de conjuntos de leis válidas deverá conter um fator que ainda não descobrimos. Esse fator ausente é óbvio: uma série de conjuntos é uma mesma ordem jurídica se os elementos da série são criados sucessivamente por um procedimento constante – no caso estudado por Voegelin, o procedimento previsto na Constituição dos Estados Unidos da América, e no nosso, o procedimento previsto na Constituição Brasileira de 1988. Assim e neste sentido, o ordenamento jurídico é composto por leis válidas e não válidas; possui um estrutura temporal clara do presente onde está a validade, com uma dimensão passada de leis que foram válidas e uma dimensão futura de leis que podem ser válidas, sobretudo as que estão em processo de lege ferenda. Resta claro, portanto, que a presunção inicial de que o direito é um conjunto de leis válidas é muito estreito à luz das presentes reflexões. Uma filosofia do direito, assevera Voegelin, se pretende tornar claros os significados contidos no conhecimento pré-analítico do direito, não deve se restringir a uma teoria do direito positivo, isto é, ao direito válido em qualquer momento presente do ordenamento jurídico. O conhecimento pré-analítico e a linguagem dos advogados abrange áreas para além do divisor de águas do direito positivo, áreas a que poderíamos nos referir como a história do direito e o processo de lege ferenda.

III      O Problema Zenônico

O problema a que Voegelin faz menção no título, como ele próprio diz, é bastante complexo. Procuraremos explicá-lo da maneira mais clara possível. Antes, porém, Voegelin lembra, é necessário analisar outras questões próximas. Elas revelarão que o procedimento constante trazido pela Constituição, entendido como a conexão entre os conjuntos de normas, não soluciona o problema do ordenamento jurídico como uma entidade identificável e existente no tempo. As metáforas que traduzem o direito como um curso de leis inválidas reduzindo a validade a uma qualidade transitória não são radicais o bastante para dar a dimensão do direito como ordem jurídica válida. Pois a ordem jurídica não consiste apenas das normas genéricas estatuídas em leis; ela consiste também, e sobretudo, de decisões judiciais. Cabe aqui fazer uma consideração sobre a afirmação de Voegelin. Na época em que foi escrita a obra, esta última afirmativa não seria admitida sem reservas pelos brasileiros, já que os tribunais brasileiros não consideravam a jurisprudência como uma fonte muito importante do direito e procuravam apenas, bem ‘kelseanamente’ – se nos é permitido usar o termo – subsumir o caso concreto ao tipo legal estabelecido na norma jurídica que o descrevia como hipótese, sendo a atuação do juiz uma aplicação cega da lei ao caso que lhe fora apresentado; o juiz de então estava mais próximo de ser a ‘bouche de la loi’, como queria o iluminista Montesquieu, do que o juiz ativista – com todos os problemas que tal atitude encerra – propugnado por teorias pós-positivistas e, sob certo aspecto, naturalistas. Voegelin lembra que já que a decisão do tribunal é o momento em que o direito se torna válido para o caso concreto e que existe uma aura de incerteza em toda lide séria, devemos admitir que nunca conhecemos realmente qual é o grupo de normas válidas enquanto o tribunal não tiver proferido sua decisão no caso concreto. Uma vez que o tribunal haja chegado à sua decisão no caso concreto, tendo portanto o grupo de normas válidas se tornado perfeito com a decisão, este grupo pertence já ao passado. Se a validade é da “essência do direito,” e se cada grupo de normas da série chamada ordenamento jurídico pertence ou ao passado em que não é mais válida ou ao futuro em que ainda não se tornou válida no caso concreto decidido, então o direito parece ter desaparecido do reino dos existentes. O resultado é paradóxico como o paradoxo de Zenão. Será bom recordar este paradoxo para que consigamos deixar o novo impasse. É impossível para o corredor alcançar o objetivo porque ele tem que passar por uma infinidade de pontos. A ilustração famosa do paradoxo é a corrida entre Aquiles e a tartaruga. Atrás da tartaruga, Aquiles jamis conseguiria alcançá-la, pois primeiro ele deve alcançar o ponto em que a tartaruga iniciou; quando houver alcançado esse ponto, então ele precisará alcançar o ponto em que a tartaruga está agora; e daí em diante ad infinitum. Este é um resultado infeliz, pois a análise filosófica tem o objetivo de tornar explícito aquilo que encontramos no saber cotidiano. Aristóteles soluciona o paradoxo de Zenão nos seguintes termos. O segundo (paradoxo)[2] é chamado “Aquiles”, e afirma que um corredor mais lento nunca será alcançado pelo corredor mais veloz, porque o que está atrás tem que primeiro alcançar o ponto no qual o que está na frente começou, de maneira que o mais lento sempre ficaria na frente (…). Vimos que o argumento leva à conclusão de que o corredor mais lento não é alcançado, (…) a conclusão de que é impossível alcançar um limite é resultado de se dividir a distância de certa maneira. No entanto, o último argumento inclui, em seu relato, a característica adicional de que nem aquilo que é a coisa mais veloz do mundo pode sobrepujar a coisa mais lenta do mundo. A solução, portanto, deve ser a mesma em ambos os casos. É falsa a afirmação de que quem está na frente não pode ser alcançado. Ele não é alcançado enquanto continua na frente, mas ele é alcançado se Zenão admitir que o objeto movente pode percorrer uma distância finita. (Aristóteles, Physique, VI, 9) Segundo Aristóteles, Zenão erra porque não considera a hipótese de que há infinitos instantes em uma duração finita. Escreve Aristóteles ainda: Assim, mesmo sendo impossível num tempo finito entrar em contato com coisas que são infinitas em quantidade, é possível fazer isso com coisas que são infinitamente divisíveis, já que o tempo também é infinito dessa maneira. Portanto, a conclusão é que leva tempo infinito, e não finito, para cobrir uma distância infinita, e leva um número infinito de agoras, e não um número finito, para se entrar em contato com um número infinito de coisas (Aristóteles, obra citada, VI, 2). Aristóteles quer explicar que até Aquiles chegar ao ponto onde a tartaruga se encontra, à sua frente, não é necessário que a tartaruga já tenha andado alguma distância, porque o tempo, embora possa ser concebido como infinitamente divisível, o “agora”, que consiste justamente na divisão do tempo, não o é, já que ele é o término comum do passado e do futuro, e se for dividido deixará de ser “agora”, parte dele será passado e parte será futuro.[3][4] Pode ser que a tartaruga não tenha se movido e Aquiles já esteja no mesmo ponto que ela. A tartaruga pode, no máximo, percorrer uma distância finita.[5][6] Entretanto a solução dada por Aristóteles não serve para o estudo da ordem jurídica pois esta não possui a dimensão temporal. Voegelin continua a exposição confessando que presumira que a ordem jurídica fosse um conjunto de normas válidas e então expandiu o significado para o de uma série desses conjuntos ligados pelo procedimento constitucional. Dado que essas presunções levaram a um resultado paradoxo, mister é concluir, de acordo com ele, que ou a ordem jurídica não é de modo algum um conjunto de normas válidas ou as palavras “normas” e “validade” contêm significados que escaparam. Nenhuma teoria do direito pode ser construída sem esbarrar no paradoxo de Zenão se essa teoria for baseada na presunção de que a ordem jurídica é um conjunto de normas válidas e nada mais. A dificuldade nasce do fato de que o significado das normas legais não possui dimensão temporal. Os significados podem se referir a objetos, eventos ou ações no tempo, mas eles mesmos não existem no tempo. A validade de uma regra, seu caráter normativo, é parte de seu significado, mas não confere status ontológico à regra. Uma construção teórica que se baseia no caráter normativo das regras está preso ao caráter “estático” de seu significado e não pode abrir caminho pela continuidade da existência do tempo, que é justamente a saída encontrada por Aristóteles, como explicamos. Até agora, portanto, o resultado é negativo. Voegelin, entretanto, faz a defesa de sua análise afirmando que a pletora de teorias legais e variedade de posições a que assistimos é causada pela falta de disposição de submeter a análise as verdades parciais que são encontradas em grande número na experiência pré-analítica do direito. À luz dessas reflexões, Voegelin explica ser necessário eliminar uma linha de construção teórica. Pergunta ele se a existência da ordem jurídica no tempo, que não se encontra no grupo ou na série de grupos de regras, não poderia ser derivada do procedimento constitucional? Reconhecedo que a idéia é sugestiva, Voegelin a afasta por mostrar que o procedimento constante fornecido pela Constituição deve de igual modo ser descrito em termos de leis válidas. Uma constituição no sentido material significa um grupo de regras referentes à organização, jurisdição e procedimento dos órgãos supremos de governo dentro da sociedade. De novo nos vemos frente a frente com um grupo de regras. E no que concerne à existência da ordem jurídica no tempo, nada se ganha com a adição do grupo de regras constitucionais aos grupos de normas criminais ou cíveis. O fato de que um reino de significados não tem dimensão temporal não é abolido pelo conteúdo específico de um grupo de regras. A validade atemporal da regra não adquire existência temporal apenas porque o conteúdo da regra diz respeito a um procedimento que deve obedecer a um determinado prazo. Sendo assim, a dimensão temporal da ordem jurídica não pode ser dada movendo-se para cima ou para baixo na escada hierárquica dos sub-grupos de normas ligados por regras de procedimento. Voegelin conclui o raciocínio dizendo que nenhuma expansão da teoria jurídica para abarcar uma hierarquia de regras ligadas pelo procedimento pode evitar o paradoxo de Zenão.

IV     A Hierarquia de Leis Válidas, O Processo Legislativo e A Ordem da Sociedade como um Todo.

Os fenômenos que se mostraram insuficientes como base para uma construção teorética devem ser suplementados agora com fenômenos contextuais que apareceram mais de uma vez à margem da análise mas foram então descartados no interesse da sua condução mais metódica. Já notamos que quando um advogado fala do “direito,” ele não se refere necessariamente ao direito individualizado dentro da pluralidade de ordenamentos jurídicos, mas ao invés ao direito concreto pelo qual se interessa profissionalmente. O direito é para o advogado o direito de seu país, em todos os níveis hierárquicos. Neste sentido, falamos de um direito inglês, britânico, brasileiro ou francês como a ordem legal de alguns países. O país específico emerge como o caso de uma sociedade que “tem” uma ordem legal e o direito emerge como algo inerente àquele país. Também começamos a usar uma linguagem que indicava a existência de uma organização com o propósito de “fazer” as leis, as quais, uma vez tendo sido feitas, tornam-se partes de um conjunto de regras legais. Parece que podemos avançar em nossa análise afastando-nos da noção de regras entendidas como um reino limitado de significado dentro da sociedade, mediante as quais os homens, sob o título de órgãos do governo, fazem o direito, presumidamente com um propósito. Não iremos abandonar como irrelevante o problema da validade das normas. Ao contrário, afirma Voegelin, o problema da validade das normas retornará com força redobrada nessa nova etapa da análise. A decisão de uma Corte não é apenas uma lei válida, mas reproduz com conseqüências sociais o que o direito significa no caso concreto. As regras gerais no nível de normas materiais proporcionam os tipos com que juízes e oficiais administrativos deverão adequar os casos individuais que lhes chegam reclamando decisões. A intrincada hierarquia de subgrupos no ordenamento jurídico tem o propósito de particularizar “o direito” às relações concretas de seres humanos. Devemos tomar cuidado, entretanto, ao usar a palavra “propósito.” No presente, não estamos preocupados com os propósitos específicos das normas, mas com a maneria com que as normas são dispostas no contexto social, com a maneira com que elas participam da existência ainda que não tenham existência autônoma. Essa maneira de existência é muito mais complexa do que a linguagem de meios-fins pode sugerir. Ainda assim, o termo propósito é indispensável, como veremos, para salientar a relação aguda entre o “direito” e a sociedade que o possui. O modelo intricado em que as normas se mesclam com a realidade social tornar-se-á aparente através de uma breve consideração sobre a hierarquia de regras e séries de regras. Nem toda declaração de regras gerais constitui um estatuto com um conteúdo legal válido. Um estatuto resulta apenas quando homens específicos em tipos específicos de ação, isto é, quando membros de uma legislatura que foi constituída e que age de acordo com a forma dada pela Constituição, concorda com certas regras. O mesmo argumento é válido para decisões individuais das cortes e agências administrativas. Alguns atos dos seres humanos produzem regras válidas se são reconhecidos como atos legislatórios à luz de outras regras, e estas por sua vez são regras válidas enquanto formuladas através de atos reconhecidos como legislatórios por outras regras, e assim em diante. A noção de hierarquia de regras válidas, portanto, deve ser expandida para um processo legislatório em que regras e atos legislatórios se alternam. Este processo, por fim, desagua na vasta realidade da sociedade que “possui” o direito feito durante o processo. Até mesmo a realidade vasta que pensamos ser extra-legal participa de algum modo do direito. Embora não nos refiramos aos empresários como legisladores, seus contratos terão força de lei uma vez atendidas as formas admitidas pela legislação própria. As relações entre seres humanos dentro de uma sociedade têm em muitos casos uma estrutura legal portanto. A linguagem do dia-a-dia indica essa relação íntima entre o direito e a sociedade.  O sujeito pouco confiável é chamado de 171, referência direta ao artigo do Código Penal sobre o crime de estelionato. O cidadão que descumpre as normas penais é considerado um fora-da-lei, ao passo que o homem que se abstém de descumprir as proibições legais é considerado um homem cumpridor da lei. Falamos ainda do homem que cumpre a letra da lei, mas viola o seu espírito; que se safa de ser apanhado porque conhece as brechas da lei, que contrata advogados para burlar a lei de modo a se livrar de condenação mesmo tendo cometido o crime. A existência do homem em sociedade está entranhada com o “direito”.

V        O Direito como a Substância da Ordem. O Processo Legislatório como Instrumento para Assegurar a Substância.

O fenômeno acima discutido abre todo um campo de pesquisa. Apenas um problema, entretanto, será discutido agora: o uso equívoco da “lei” no sentido de regras válidas feitas por órgãos do governo e “a lei” que pervade a existência do homem em sociedade. Preservado nesse pequeno equívoco da nossa linguagem cotidiana está um profundo discernimento, raramente encontrado na teoria jurídica contemporânea, de que “a lei,” ou “o direito,” são a substância da ordem em todas os campos do ser. A experiência com o transcendente é, por definição, indefinível. Ela pode ser expressa, porém, através de símbolos, pode ser aludida poeticamente. O símbolo é a condensação imaginativa de experiências personalíssimas que remete, por analogia intrínseca, ao simbolizado. A analogia intrínseca distingue-se da extrínseca (própria das metáforas) porque a essência dessa é atribuir uma nota comum no analogante, seja uma nota essencial, uma propriedade ou um acidente, não importa, ao analogado, que no entanto não a possui essencialmente. Ilustra-se: quando o namorado chama a namorada de “meu docinho”, ele atribui a ela uma nota essencial de “docinho”, qual seja, a doçura, mas na namorada a doçura é um acidente, isto é, embora ela possa ter incorporado ao seu mais íntimo ser essa característica, ela não se torna necessária à sua constituição formal. Se num momento ou outro deixasse a doçura de lado e ficasse ácida (o que não é nada improvável), a namorada continuaria sendo a pessoa que é. A analogia intrínseca, por sua vez, atribui uma nota essencial do analogante ao analogado, que a possui essencialmente. A árvore da vida da cabala possui níveis hierárquicos que correspondem simbolicamente aos níveis do ser. Ela é um símbolo da ordem do ser. Um exemplo mais trivial: tem crescido uma experiência de aprendizagem de línguas chamada Tandem, pela qual duas pessoas conversam metade do tempo na língua que uma domina e a outra deseja aprender e na metade seguinte invertem os papéis. Tandem, em alemão, significa bicicleta em que duas pessoas pedalam. Ora, Tandem foi usada a tal ponto como símbolo dessa experiência de aprendizagem de línguas que lhe emprestou o nome. É da essência de Tandem os lugares para que duas pessoas a pedalem, como é da essência dessa experiência ter duas pessoas que ensinam e aprendem reciprocamente. A bem da verdade, as antigas civilizações costumavam ter em suas línguas um termo que significava a substância ordenadora permeando a hierarquia do ser, desde Deus, passando pelo mundo e a sociedade, até cada ser humano em particular. Esses termos são o egípcio maat, o chinês tao, o grego nomos e o latim lex ou ius. O egípcio maat, por exemplo, significa a ordem dos deuses que, em virtude de seu maat, criam a ordem do cosmos. Dentro dessa ordem cósmica, o termo aplica-se especificamente à ordem do reino do Egito, criada por virtude do divino maat que vive no Faraó. Do Faraó esse maat desce pelo corpo social, mediado pela administração real e hierarquia de oficiais, até chegar ao juiz que decide o caso individual. Dado que a mediação do maat reclama um entendimento e articulação inteligente prévios, o termo adquire o significado de “verdade” sobre a ordem; e dado que o conhecimento dessa verdade não é um monopólio da administração, o direito pode ser julgado pelo conhecimento comum sobre a verdade da odem e os súditos podem protestar veementemente contra desvios do maat e criticar a conduta dos oficiais. O termo egípcio iluminará nosso problema, pois o compacto simbolismo do maat mostra que por trás dos equívocos de nossa linguagem cotidiana repousa a experiência de uma substância que penetra a ordem do ser, da qual a ordem social é uma parte. O que é a ordem do ser? São os princípios que dão fundamento e perpassam o mundo imanente. O mundo imanente, em que nossos pés estão plantados, depende do transcendente. Para lá podemos voltar nosso espírito. O transcendente é independente do imanente, por isso os chineses representavam o tao como um círculo fechado. Se tivessem pintado o mundo imanente como um círculo pontilhado, uma vez que recebe o influxo vital do transcendente (não pode estar fechado a ele), não teriam deixado de fazer algo significativo.

     
       

A própria atividade filosófica poderia ser simbolizada por esses dois círculos. Consegue o leitor adivinhar? A sabedoria como um círculo completo que nutre o círculo tracejado da pessoa que conhece[7], sempre provisório, uma vez que a cada migalha que a sabedoria lhe presenteia precisa rever e integrar numa nova totalidade sua experiência. Por essa razão mesma a sabedoria dosa sua doação ao conhecimento, para não sobrecarregá-lo (sobrecarregar não é do feitio da sabedoria). Ela só pode nutrir o conhecimento se o filósofo a ama, daí que o conhecimento deve tender a ela, deve buscá-la. Ao presentear a pessoa que lhe ama, a sabedoria não está apenas reconhecendo um favor que lhe foi feito, não se trata de uma gentileza sua, de uma delicadeza, ela também procura a pessoa. Na atividade filosófica não é só o homem que ama a sabedoria, ela também o ama (por isso lhe concede graças). Trata-se na realidade de um encontro amoroso.[8]

   

A maneira que o homem tem de agradecer a sabedoria é inspirando sua busca em outras pessoas, repassando-a, no que estiver a seu alcance, e na medida em que o postulante realmente a queira e esteja maduro para recebê-la. Não esqueçamos a divisa de Jesus: “Pérolas aos porcos”. Ter um Ajustador do Pensamento não é requisito para ser homem. Andon e Fonta não tinham Ajustador do Pensamento, o que não obstou terem vidas significativas. A diferença do homem face aos demais animais não é ter acesso ao espírito (sim, os animais têm acesso a cinco espíritos ajudantes da mente, espécies de circuitos espirituais). Ambos têm o sentido comum (faculdade mental, apesar do nome), a potência estimativa e os desejos concupiscível e irascível, conforme nos ensinou a escolástica.[9] Ou seja, tal como o homem, através do sentido comum o gato sabe que o pastor alemão que late é o mesmo que tem as cores marrom e preta; através da potência estimativa sabe que deve correr do pastor alemão se ele parecer hostil; e tem os desejos concupiscível, pelo qual gosta do cuidado do dono e desgosta de tomar banho, e irascível, quando, fazendo uso da potência estimativa, deve escolher um entre dois estímulos contraditórios, um entre dois desejos concupiscíveis.[10] Por exemplo, o gato pode miar de manhã cedo pedindo ração à dona que ainda não levantou da cama, mas sabe, por experiência passada, que outra pessoa pode querer jogar-lhe água por esse motivo. Ele escolhe miar mesmo assim, porque calculou que se a pessoa for jogar água nele, tem tempo de correr. A realização do desejo irascível envolve uma dificuldade, que gerará no animal, segundo sua avaliação estimativa, a ação de superá-la ou a desistência. Por isso, o animal terá esperança de alcançar o objeto que lhe agrada ou desesperança ao saber que precisa abandoná-lo para outra ocasião menos arriscada. Ele terá nervosismo durante a execução de seu intento e alívio ao conseguir o objeto de desejo. Agora imaginem um rotweiller perseguindo o gato. Ele estimou que não lhe é vantajoso permanecer na casa invadida e sai correndo. Mas mesmo assim o rotweiller o alcança. Encurralado, o gato irá avançar contra o cachorro, num gesto final de sobrevivência. O gato terá tido ira ao digladiar-se como último recurso contra uma ameaça. Daí o nome desse desejo, desejo irascível. O qual nasce da resistência do mundo à satisfação do desejo concupiscível. A ira está igualmente presente, quando, travado entre um e outro estímulos contraditórios, o gato precisa agir, mesmo sem avaliar perfeitamente a situação (nenhum animal jamais avalia). A ira, nesse caso, é um impulso para a ação. A diferença do homem face aos outros animais é a percepção intelectiva e seu correlato, a vontade. Elas só existem porque o homem passou a integrar mais dois circuitos espirituais, os espíritos da adoração e da sabedoria. Andon e Fonta tornam-se seres humanos de pleno direito porque tiveram acesso a esses dois circuitos. A animalidade racional, nota essencial específica sua e minha, leitor, completa-se aí. O Ajustador do Pensamento, e antes dele o Espírito Santo, só atuam no homem (homem enquanto membro indefinido de uma determinada sociedade) quando existe um certo grau de avanço espiritual legado pela influência de revelações anteriores (é como um patamar espiritual que ele recebe em seu colo). No homem concreto, agora sim, a ação do Ajustador e do Espírito Santo varia de acordo com sua vontade de crescer espiritualmente. A percepção intelectiva gera no homem percepção da realidade em si, não da realidade como estímulo, tal como ocorre com os animais em geral. Isso significa que o homem percebe, tal como o gato, que o rotweiller da casa vizinha é perigoso, mas sua periculosidade é associada a uma série de outras características que estão presentes na informação de seu ser. O homem entende sua realidade. Por isso, ele é capaz de imaginar que o mesmo rotweiller seja até dócil, e que depois de algumas visitas cordiais à casa do vizinho mostrar-se-lhe-á assim.[11]Atualização de 03/02/2012: o homem pode pensar com seus botões que o animal lhe venha a se tornar dócil, o animal talvez não, mas perceber realidade, que é o traço distintivo do homem em relação ao animal, não é isso. Perceber realidade é perceber a presença do infinito no finito ou, o que não é o nosso caso, sua presença em outro nível de vivência, absonito, por exemplo. Porque percebe a presença do infinito os fatos não são mero fatos para o homem, têm uma transcendência, o homem pode dizer: “Isso significa muito para mim.” O animal jamais terá esse sentimento. Para o animal, a realidade se apresenta como signo de uma resposta (conferir Zubiri, pp. 21-23), para o homem, enquanto realidade, ela significa algo mais que a mera conjunção material de fatores. Um cachorro perneta que aprende a caminhar usando um carrinho mecânico saberá que está se locomovendo e, por melhor que seja, essa experiência é apenas isso, para o homem voltar a andar pode significar muito mais, pode significar uma vitória pessoal. A vida do homem pode ser rica de significados. Voegelin traça um paralelo entre as experiências do maat egípcio e do sentimento de justiça do homem moderno, às vezes expresso na palavra lei, às vezes não, para mostrar como a experiência de uma ordem ontológica inata permeia a ordem social e a molda. O direito, diz ele, é parte inerente e essencial da sociedade, apesar de que a maneira dessa participação possa ser complicada pelo fato de que requer, para ser garantida, a ação humana organizada, o tipo de ação que chamamos de processo legislatório. O termo grego, nomos, a seu turno, não significa meramente a lei no sentido jurídico. Vejamos o que escreveu o tradutor Edson Bini da obra As leis, de Platão, em sua nota preambular: O título com o qual traduzimos NOMOI (As Leis) não faz jus ao rico e lato   conceito grego, mas isto é inerente às limitações lingüísticas. A transferência de idéias de um quadro de signos para outro (tradução) é uma arte espinhosa, embora fascinante(…) Assim em NOMOI H NOMOQESIAI Platão abarca não apenas o domínio estritamente jurídico, como também as áreas correlatas da política, da ética, e mesmo da psicologia, da gnoseologia, da ontologia, além daquelas das matemáticas, da astronomia, da religião e da mitologia. (PLATÃO, 1999, p. XXXV) Ou seja, o termo nomos, tal como o maat egípcio e os outros supra-citados, referia-se a uma realidade ontológica entendida por qualquer membro da sociedade como critério para julgar a sociedade existente do momento. Voegelin, em seguida, faz uma crítica da teoria jurídica que enxerga o direito como sendo um conjunto de normas hipotéticas que ordenam aos tribunais responder com certas ações – julgamento, sentença e execução – as ações que se subsumirem à parte hipotética da lei. A ordem jurídica, afirma ele, dentro dessa construção, não proibiria o assassinato ou o roubo, mas apenas atribuirira determinadas conseqüências a esses tipos de ação, deixando ao arbítrio do indivíduo evitar ou praticar essas ações. Se assim fosse, continua Voegelin, não faria sentido chamarmos de bandido ou fora-da-lei ao homem que comete essa ação, ele teria apenas feito sua escolha dentro da gama de possibilidades abertas pelo enunciado legal. Tampouco faria sentido chamar o crime de ação ilegal. Na nossa vivência cotidiana do direito, portanto, o motivo por que certas conseqüências, no caso as punições, deveriam ser atribuídas a certos tipos de ações, no caso os crimes, não seria uma questão de filosofia do direito, porém pertenceria ao reino dos propósitos “morais,” extravasando o direito. O significado do homem cumpridor da lei também evaporaria, pois nada que esse indivíduo faça poderá ser classificado como relevante legalmente em termos de ações que se subsumem a tipos previstos na série de regras válidas. Contra essa construção encontra-se o mesmo argumento usado contra o impasse do paradoxo de Zenão: A proposta da análise não é fazer nonsense de nosso conhecimento pré-analítico sobre o direito, mas ao invés tornar explícito seu sentido. Sendo assim, devemos preferir a presunção de que o processo legislatório faz sentido como um instrumento para garantir a substância da ordem que participa de maneira essencial na sociedade. Esta presunção, se faz especialmente necessária porque raramente o enunciado legal se reveste da linguagem normativa “Está proibido(…)” ou “É permitido(…).” A lei escrita normalmente descreve fatos ou comportamentos que se tornam relevantes através de outros fatos e comportamentos, estabelecidos pelos órgãos de governo, que os sucedem. O fato de esse conjunto de tipos legais ser construído com o objetivo de garantir a ordem nas relações sociais não é tornado explícito nos textos legais, muito embora a tão propalada intenção do legislador possa ser explicitada nos “preâmbulos” da lei. Na maioria das codificações modernas, entretanto, a intenção é pressuposta e a técnica do legislador concentra-se em construir tipos que realizarão sua intenção com o máximo de probabilidade. É possível, em princípio, construir uma ordem jurídica inteira através de definições e proposições sem usar vocabulário normativo. Resumindo essas considerações podemos dizer que o processo legislatório participa da natureza do direito tanto quanto serve ao propósito de garantir a substância da ordem na sociedade; e a ordem dentro da sociedade é a área onde devemos procurar pela natureza do direito.

VI     Construções Teoréticas da Relação.

As relações recém indicadas motivaram uma série de construções na filosofia do direito. As principais foram: Em Platão e Aristóteles a ênfase recai sobre a substância da ordem na sociedade, especificamente na ordem da pólis helênica. A pesquisa sobre a verdadeira ordem na pólis é a principal tarefa do filósofo. As regras específicas são formuladas tenda em vista a articulação da verdadeira ordem na sociedade, a qual devem assegurar. Na gênese do estado nacional moderno, por sua vez, o processo legislatório entra para o centro dos interesses. Na luta entre as autoridades do Império e da Igreja, da lei Romana e dos estados, os governos dos cada vez mais fortes estados nacionais asseveram a supremacia do estado para fazer a lei. O príncipe, como representante do estado, torna-se o legislador soberano. Toda a legislação válida emana dele, seja diretamente ou através de agentes para quem delegou autoridade legislatória. Permanece, entretanto, o reconhecimento de que os legisladors soberanos precisam assegurar a substância de uma ordem que não é feita por si. Este é o tipo de construção feito por Bodin no século dezesseis. O direito é reconhecido dentro de seus dois aspectos hierárquicos de regras válidas e de autoridades legislativas. A hierarquia de regras válidas tem no seu estrato superior a lei natural e divina. No século dezessete, entretanto, a ligação entre o processo legislatório do soberano com uma substância da ordem autônoma fica enfraquecida pela construção de Hobbes. Ele reduz a substância da ordem ao postulado da paz dentro da comunidade. Esse é o mesmo julgamento de Michel Villey, teórico muito querido pelos defensores do direito natural, sobre a obra de Hobbes: De même que Dieu crée lê monde, continûment à chaque seconde, ainsi l’existence de Léviathan est-elle une création continue de volontés individuelles. Sans doute le pacte est-il presente comme conclu une fois pour toutes, et depuis ce moment lie-t-il son auteur, parce qu’il y aurait absurdité à se contredire soi-même, et que la cause du contrat demeure, la paix garantie par le prince(…). (Villey, 2003, p. 584)[12] Hobbes disse que o homem vivia num estado de natureza em que a lei natural eram o egoísmo e o interesse próprio[13]. Ele acreditava que o homem deveria render seu direito de liberdade em prol de uma ordem de governo forte, sob comando do rei, que seria capaz de zelar pela segurança do homem, segurança essa que no estado de natureza não existia.[14] Em outros trabalhos, Voegelin, não obstante desprezando o valor filosófico da obra hobbesiana, considerou seu autor um psicólogo monumental, que analisou como poucos o medo humano da morte.[15] Se a ordem assim alcançada, continua Voegelin, manifestará uma substância Judaico-Cristã, que em Bodin ainda foi considerada, já não é importante. Nessa altura do livro Voegelin dá uma pista de onde quer chegar com sua concepção de ordem substancial. De passagem ele se refere à substância Judaico-Cristã da ordem. É através da referência a essa substância que o homem comum identifica se um ato é legal ou não, mesmo quando desconhece o direito. Um colega do curso de graduação uma vez afirmou que no direito muitas vezes é possível prescindir da legislação positiva para saber a solução de um conflito jurídico, valendo para tanto o bom senso. Muitas concepções arraigadas da nossa civilização, como a igualdade dos homens, por exemplo, derivam diretamente dos ensinamentos de Jesus Cristo, que em várias oportunidades mandou não fazer distinção entre homens. Desses ensinamentos resultou, tardia embora, a noção de que nenhum homem pode ser senhor da vida de outro homem. O cientista político norte-americano Dinesh D’Souza postula que “os únicos movimentos que se opuseram à escravidão foram mobilizados no Ocidente, e foram em sua maioria absoluta liderados e constituídos por cristãos” (D’Souza, Quem acabou com a escravidão?). A partir do progresso do secularismo e da desintegração da filosofia nos séculos dezenove e vinte, o processo legislatório alcança autonomia completa, isto é, os teóricos retiram da teoria do direito a questão da ordem substantiva. Outrossim, os teóricos demonstram uma tendência para dividir o processo legislatório em dois componentes, as regras válidas e os atos de sua criação, tornando cada um dos componentes em separado a base de sua construção teórica. Resulta disso um desenvolvimento paralelo de ciências do direito normativa e sociológica. O caso representativo de ciência normativa é a “Teoria Pura do Direito” de Kelsen. Nesta teoria, o processo legislatório adquire, de acordo com Voegelin, o monopólio do título “direito”. A hierarquia de Kelsen culmina numa norma básica hipotética que ordena que os membros da sociedade se comportem em conformidade com as normas que derivam em última instância da constituição. Portanto, o direito e o estado, no entendimento de Kelsen, são dois aspectos de uma mesma realidade normativa. Dado que a norma hipotética básica ocupa o lugar da lei natural e divina de que nos falava Bodin no topo da hierarquia, os problemas da ordem substantiva são eliminados. Qualquer poder que se estabeleça na sociedade é o poder legislatório, e de acordo com a norma hipotética, quaisquer regras que se façam serão leis. Os problemas clássicos de ordem verdadeira e falsa, justa ou injusta, não pertencem à ciência do direito ou à ciência alguma. Pois a única ciência da sociedade que Kelsen admite além da normativa é uma “sociologia”, definida como uma ciência preoucupada com ações humanas e suas relações causais. No caso de se usar os atos legislativos como base de uma construção teórica, é difícil escolher um único sistema representativo. Deparamos-nos com uma série de tentativas de fazer uma “sociologia” do direito. Um rico vocabulário de objetivos legislativos e funções legais significam o apanhado de relações entre seres humanos e a ordem da sociedade – paz doméstica, bem estar, previdência social; liberdade e propriedade; interesses de grupos ou classes; proteção dos mais fracos; ajuste, defesa social, prevenção e reabilitação; comportamentos legais ou ilegais, anti-sociais, etc. O que essas teorias têm em comum é que jamais passam do nível pré-analítico, sua pesquisa não pretende chegar ao critério filosófico da ordem verdadeira. No seu conjunto, manifestam o mesmo estado de fragmentação filosófica que é evidente na ciência do direito normativa. Para Voegelin, a tarefa de encontrar a ordem substancial jamais será realizada se a pesquisa se deter em aspectos parciais do direito como o comportamento do juiz, a pressão de determinados grupos, ideologia de movimentos políticos, necessidade de reformas judiciárias, etc.

VII  Estrutura, Continuidade e Identidade do Complexo da Ordem.

Enquanto um grupo de regras válidas, o direito deve ser situado no contexto social do processo em que é criado; e o processo legislatório a sua vez deve ser situado no contexto da sociedade que garante sua ordem substancial através desse processo. No momento, é preciso distinguir entre o “direito” no sentido de regras legais e do processo legislatório; e o “direito” no sentido da ordem substancial da sociedade. Quando definirmos o termo “legal,” não será uma definição de essência, pois já estabelecemos que a ordem legal enquanto um conjunto de regras não tem status ontológico, e, conseqüentemente, não tem essência ou existência. Na estrutura dessa entidade podemos discernir duas tensões essenciais: primeiro, a tensão entre a ordem substancial da sociedade e o processo legislatório tendo em vista que o processo organizado de fazer o direito é aparentemente o meio inevitável de manter a ordem substancial em existência; e depois, a tensão entre a ordem substancial da sociedade conforme ela existe empiricamente e a ordem substancial verdadeira da qual a ordem empírica, platonicamente, apenas se aproxima. No presente devemos lidar apenas com a primeira dessas tensões, ou seja, com a orientação da ordem legal como um meio de realizar a substância da ordem substancial na sociedade. Devemos, em primeiro lugar, tratar do peso desta relação em referência ao lado social do complexo da ordem. Tendo descoberto na sociedade aquilo que dá o peso da existência no tempo à ordem legal, devemos perguntar mais uma vez: O que queremos dizer por “direito” quando falamos sobre o direito americano, italiano ou brasileiro, ou sobre a história do direito civil ou administrativo francês? Com certeza não nos referimos apenas ao conjunto de regras válidas ou à série destes conjuntos, mas deixamos entrar em nossa linguagem um componente de significado que provem do lado social. O efeito do peso peculiar do lado social tornar-se-á aparente e inteligível se refletirmos sobre certas questões laterais do direito constitucional. Se a ordem legal é compreendida como um grupo de regras válidas ou como uma série desses grupos, todas as partes componentes da ordem derivam sua validade, pela mediação das regras procedimentais, da contituição em sentido material. A ordem jurídica é constituída como uma unidade de significado pelas regras relacionadas ao procedimento de sua criação. A aparente clareza da construção é prejudicada pela questão já levantada sobre o status de regras que foram válidas sob a constituição, mas não o são mais, e sobre aquelas que não são válidas agora mas serão no futuro, como expressado no magistério de Caio Mário da Silva Pereira, o civilista brasileiro, não o general romano: Encerrada a fase de elaboração da lei, depois de votada, promulgada e publicada, merece cuidado o problema de sua vigência. Perfeita e completa, torna-se um comando, que se dirige à vontade geral, ordenando ou proibindo, ou suprindo a vontade dos indivíduos. À semelhança da vida humana, também as leis têm sua própria vida, que é a sua vigência ou a faculdade impositiva: nascem, existem, morrem. Estes três momentos implicam a determinação do início da sua vigência, a continuidade da sua vigência e a cessação da sua vigência. (PEREIRA, Instituições de Direito Civil, vol. 1, cap. V) Para Voegelin, esta questão deve ser deixada em suspenso por enquanto. Ele prefere examinar agora o fenômeno das chamadas “mudanças” na própria constituição. Atingiu-se o topo da hierarquia das regras nos procedimentos constitucionais. Não há uma constituição acima da constituição que ligaria uma série de grupos constitucionais numa única ordem jurídica da mesma maneira que os sub-grupos estatutários são ligados pela constituição. Chegamos ao ponto em que o problema da validade não pode mais ser resolvido de modo intrassistemático pelo regresso a um grupo de regras procedimentais de mais alta hierarquia. Estamos diante do fenômeno de que a validade do direito tem sua origem em fontes extralegais. A solução dada por constitucionalistas contemporâneos à aporia positivista foi dar papel de proa aos princípios constantes da Constituição escrita, os quais informariam o direito como mandados de otimização. Também serviriam para costurar a miríade de leis que escapam ao poder concentrado do Parlamento, afastando a ameaça de um atomismo jurídico. Dirá Binenbojm: Aos riscos “criados pelo enfraquecimento da lei formal e pela multiplicação dos ordenamentos administrativos setoriais, propõe-se como resposta a constitucionalização do direito administrativo”(BINENBOJM, 2006, p. 36). A definição de princípios jurídicos, dada por Gomes Canotilho e Vital Moreira, é de que são núcleos de condensação de valores. Como tais, os princípios remetem a uma validade, se não extralegal, ao menos ontologicamente anterior à própria lei. De sorte que o desgastado direito natural clássico e o chamado movimento pós-positivista não são tão antagônicos assim, antes juntam forças contra o positivismo; ambos admitem e desenvolvem a noção de um direito que não se reduz à lei estrita.[16] Suas diferenças dizem mais respeito aos resultados de certas ponderações entre interesses jurídicos[17], de resto muito discutíveis, do que ao reconhecimento de fontes jurídicas estranhas à própria regra legal. A dificuldade na aplicação dos princípios pode “descambar para um caprichoso decisionismo.” No clássico Teoria dos princípios, Humberto Ávila reclama a “capacidade de controle intersubjetivo da argumentação”. “A mera proclamação, por vezes desesperada e inconsequente, de sua importância” face às regras não deve dar azo àquilo que Pirandello chamava de fascismo: “Uma palavra vazia onde cada um coloca o que quer.” A esta altura, prossegue Voegelin, mais de uma linha de análise se oferece. Em primeiro lugar, o problema pode ser eliminado através de uma construção do tipo intentado por Kelsen com sua norma básica hipotética. A norma hipotética confere validade à própria constituição e fecha o “sistema” legal. Esta construção deve ser rejeitada como um nonsense analítico. Não analisa coisa alguma, ela interrompe a pesquisa sobre a natureza do direito. Em ciência, diz Voegelin, estamos interessados no estudo da realidade, não na construção de um “sistema” que evita seu estudo. Uma segunda linha se abre com a diferenciação feita por Bodin de hierarquia de normas para o processo legislatório entre o direito divino e natural. Aqui de fato chegamos a novas áreas de realidade, ou seja, a novas áreas de autoridade de onde o direito deriva sua validade. Novamente Voegelin deixa para depois a exploração dessa linha de raciocínio, pois, segundo ele, para além das autoridades cujos símbolos “direito divino e natural” se referem, existe uma outra fonte de autoridade, a autoridade do poder organizado socialmente. Bodin toma em consideração esta autoridade em sua filosofia do direito quando diz que o príncipe deriva seu poder legislatório soberano tanto da espada quanto de Deus. A estrutura de poder da sociedade é a realidade que se torna articulada legalmente nas regras materiais da constituição, e por isso merecem nossa atenção premente. As regras de uma constituição procuram criar uma ordem estável para a sociedade colocando o poder supremo ordenador em órgãos do governo que representam o poder atual de articulação da sociedade. Se os constituintes houverem diagnosticado corretamente esse poder; se, além disso, eles forem bons artífices e souberem articular legalmente o poder; e se, por fim, a estrutura de poder que criou a constituição é estável, então a constituição durará. Se a estrutura de poder não for estável, deixando de lado os outros dois pontos, a constituição não poderá durar. Acontecimentos mais ou menos violentos seguir-se-ão e as regras constitucionais terão que ser adaptadas à estrutura de poder em mudança, pela própria prática, interpretação, emendas formais ou, em último caso, por sua substituição completa. O câmbio do regime monárquico pela República é contado por Machado de Assis como um episódio sem maiores repercussões. Ele o simboliza na ‘crise das tabuletas’, narrada nos capítulos LXII e LXIII do romance Esaú e Jacó. Coelho Neto, se bem que em outro contexto, repetiria que “houve apenas mudança de rótulo”.[18] Entretanto, no estado da Bahia a troca de regimes causou maior alvoroço do que o desespero vão do personagem Custódio. A adoção do casamento civil, em paralelo ao religioso, foi rejeitada por Antonio A chamada Revolução Federalista, no sul do país, foi travada com bastante brutalidade. “O bispo de Porto Alegre, dom Cláudio Ponce de León, chegou a alertar o país quanto aos crimes e barbaridades cometidos na guerra civil.” (ARINOS, 1968, pp. 58 e 59) De sorte que “ia confirmar-se a previsão de Deodoro a Lucena, no 3 de novembro[19]: “Ainda há de haver revoluções, e o sangue que não correu ainda há de correr.”” (ARINOS, 1968, p. 58) Esses fenômenos de adaptação dão impulso a questões ligadas à identidade da ordem jurídica. Se um país emerge de uma revolução com uma nova constituição, criada por procedimentos que não eram dados pela constituição anterior, uma ordem jurídica chegou a seu fim e uma nova foi instaurada. Se diante desse fenômeno adotamos a construção do direito como um grupo de regras válidas que derivam da constituição, chegaremos à conclusão de que com a nova ordem jurídica um novo “estado” foi criado. Algumas construções que foram nesse sentido chegaram à conclusão lógica de que a validade de um estatuto que sobreviveu imutável à revolução não deriva da constituição antiga mas da nova.

VIII     A Luta de Aristóteles com o Problema da Identidade.

Aristóteles se preocupou bastante com esse tipo de problemas. Ele aplicou à polis as categorias de forma e substância, admitindo a constituição, a politeia, como a forma. Mas qual seria a substância da sociedade, se a constituição era sua forma? Seriam os cidadãos? Se sim, quem seria o cidadão? Toda mundo que tivesse residência permanente na cidade seria contado como cidadão? Mas então escravos seriam cidadãos e a teoria entraria em conflito com a linguagem pré-analítica do cotidiano. Para Aristóteles a questão principal é: Pretendemos nos referir a uma pólis como a mesma pólis conquanto o povo e sua residência permanecem o mesmo, a despeito do fato de que os membros de uma pólis são um fluxo de de gerações, um fluxo de seres humanos chegando à existência e morrendo, e portanto nunca são o mesmo de um dia para o outro? Aristóteles se distancia da questão social da ordem e dirige seu argumento em direção ao mesmo impasse Zenônico para o qual dirigimos ao tratar da ordem jurídica válida. A sociedade é uma entidade composta de seres humanos. A pólis não pode ser identificada com os seus membros, os quais mudam dia a dia em virtude das mortes e nascimentos; ela deve ser definida em termos, não de seres humanos, porém de cidadãos como a substância da sua forma; e a forma será sua constituição. Se a constituição for a mesma, a pólis será a mesma, não importando aumento ou diminuição de sua substância de cidadãos. Voegelin considera que Aristóteles deixa a análise incompleta, pois não contempla com o devido rigor a possibilidade de a constituição mudar (a pólis é a mesma quando isso acontece?) bem como não examina a fundo a questão do status do cidadão sob um regime oligárquico ou tirânico, em que ele não participa do processo de governo. Voegelin atribui o resultado insatisfatório da análise de Aristóteles à transferência não submetida à crítica das categorias de forma e substância a campos do ser para as quais elas não foram criadas. Essa transferênca leva a dificuldades não apenas na política de Aristóteles mas também na sua psicologia, quando ele tenta construir uma forma noética da alma, diz Voegelin. Isso conduzirá a dificuldades infinitas na antropologia e psicologia escolástico-medievais, onde a alma é usada na especulação como sendo a “forma” do homem. O princípio da individuação humana, tratado de modo incompleto por Tomás de Aquino, que considerava a individualidade do homem advinda apenas da matéria[20] – alguém já disse, não sem certa dose de razão, que uma fonte do materialismo moderno é essa[21] –, será melhor apreciado pela outra grande figura escolástica, João Duns Scot, o doutor sutil, que afirma que a única maneira de existir é ser individual.[22] Ora, é preciso realmente um baixo nível de percepção para achar que a diferença entre dois seres da mesma espécie resume-se à quantidade de matéria presente em sua composição hilemórfica. Como se a diferença entre o seu Madruga e seu Barriga fosse apenas o volume que ocupam no espaço. Não, seus rostos (para nos atermos às diferenças físicas) são qualitativamente diferentes (e a quantidade de matéria empregada obedecerá a essa qualidade). A individualidade é mais pronunciada conforme à excelência do próprio ente. Assim, a individualidade de uma pedra tende a nulo, enquanto a de um sapo é mais destacada (e a do homem mais ainda). É de se lamentar, já que se chegou ao assunto, que especialistas em Tomás de Aquino, num apanhado genérico, vivam um certo comodismo intelectual, que se compraz em limitar seu campo de conhecimento à obra do Aquinate, e quando muito a seus comentadores, não se permitindo trocar significados e crescer com outros filósofos de altíssimo gabarito. Sobre a haecceitas, no dicionário Ferrater Mora explica-se: que é uma individuação da forma, mas não pela forma(…) A individuação scotista permite a determinação completa do singular sem recorrer à existência; é antes a condição exigida necessariamente para toda existência possível, já que somente são capazes de existir os sujeitos completamente determinados por sua diferença individual: em suma, os indivíduos. (MORA, Heceidade, 2000, p. 1290) Mário Ferreira dos Santos, por sua vez, explica que a haecceitas “(…) pertence, pois, à ordem da entidade qüiditativa e formal, mas, em si mesmo, não é uma forma, pois do contrário determinaria uma nova espécie; o acto individuante é, em sua forma, sua última actualidade.” (SANTOS, Teoria do Conhecimento, 1958, p. 168) Se é verdade, como diz Olavo de Carvalho em sua História Essencial da Filosofia, que a teoria escotista da individuação relaciona-se ao fato de que a alma individual deve sobreviver à dissolução da substância material humana, e portanto a individuação não pode ser dada pela quantidade de matéria que entra no composto hilemórfico[23] — uma visão arguta da teoria escotista, muito embora não a tenhamos encontrado na obra do próprio Scot –, então é mister transcrevermos passagem do Livro de Urântia sobre a sobrevivência da personalidade espiritual. “O discernimento da fé, ou intuição espiritual, é o dom da mente cósmica associado ao trabalho do Ajustador do pensamento, o qual é uma dádiva do pai ao homem. A razão espiritual, a inteligência da alma, é dom do Espírito Santo, dádiva do Espírito Materno Criativo ao homem. A filosofia espiritual, a sabedoria das realidades espirituais, é dom do Espírito da Verdade, a dádiva combinada dos Filhos auto-outorgados aos filhos dos homens. E a coordenação e interassociação desses dons de espírito formam, no interior do homem, uma personalidade espiritual dotada de um destino potencial. É essa mesma personalidade espiritual, sob a sua forma primitiva e embrionária na posse do Ajustador, que sobrevive à morte natural na carne. E essa entidade composta de origem espiritual, em conjunção com a experiência humana, por intermédio da forma     de vida provada pelos Filhos divinos, fica capacitada a sobreviver (conservada pelo Ajustador) à dissolução do eu material, e mental, quando essa sociedade transitória, do material e do espiritual, for rompida com a cessação do movimento vital.”[24] (Livro de Urântia, 2007, documento 101, p. 1110) No caso presente e de acordo com Voegelin, a transferência impede Aristóteles de ligar sua teoria da “forma” da pólis (Política III) com sua teoria sobre a natureza da pólis. Ele não analisa a contento o problema do processo legislatório que culmina na constituição e ele jamais esclarece a conexão desse problema com a ordem da pólis que existe continuamente no tempo e que deve ser assegurada pelo processo legislatório, seja ele democrático ou oligárquico. Essas observações devem servir de aviso. Lidamos com um problema que aturdiu até um Aristóteles. Devemos tomar a maior precaução em olhar cada passo de nossa análise.

IX     As Questões Tangentes do Direito Constitucuional.

A continuidade da ordem jurídica obviamente está carregada de problemas. Devemos, de acordo com Voegelin, voltar mais uma vez aos fenômenos pré-analíticos para evitar construções errôneas. Podemos conseguir ajuda entendendo as relações entre a ordem jurídica e a realidade social a partir de situações fenomênicas em que revoluções na estrutura de poder ocorrem sem uma quebra na continuidade legal. No século dezenove e começos do vinte, a transição da monarquia absolutista para uma monarquia representativa e constitucional foi mais de uma vez realizada por iniciativa do próprio rei absolutista de impor a constituição, incluindo o Brasil de Dom Pedro I. Questão a ser discutida é se a ordem jurídica resultante deriva sua validade da nova constituição ou do ato unilateral do rei que impõe a constituição. Os dois lados em oposição concordariam que a validade da ordem jurídica, que culmina na constituição, deve algo à autoridade do poder político na sociedade. É compreensível, portanto, que os líderes do movimento constitucional no século dezenove tivessem pouca simpatia pelo método da imposição, pois criava uma situação confusa a respeito da fonte da autoridade. Outros fenômenos elucidativos são dados pelas estranhezas que cercam as políticas da assembléia constituinte na revolução nazista. Admitido que a “legalidade” teve um grande apelo na psicologia de massas do século vinte, a liderança nazista teve o cuidado de adaptar as regras constitucionais à nova estrutura de poder através de emendas previstas na Constituição de Weimar. (O mesmo método fora usado antes, por um tempo pelo menos, pelo governo fascista da Itália.) O resultado foram monografias de advogados constitucionalistas alemães, alguns alegando que a Constituição de Weimar ainda estava em vigor, outros alegando que a mudança revolucionária na estrutura de poder criara uma nova constituição. Nesse momento, tornou-se um assunto ainda mais premente se a identidade da ordem jurídica deveria ser construída em termos de validade intra-sistemática e procedimental ou em termos da autoridade que emanava da estrutura de poder da sociedade. Por fim, um importante fenômeno é dado pela história da Constituição dos Estados Unidos da América. O procedimento pelo qual se criou a Constituição de 1789 não foi proporcionado pelos Artigos da Confederação daquele país. Cumpre esclarecer o que foram os Artigos da Confederação. Joseph Story, professor de direito em Harvard, em obra clássica sobre o ensino da ciência jurídica em seu país, explica a respeito dos Artigos da Confederação: On the 11th of June, 1776, the same day, on which the committee for preparing the declaration of independence was appointed, congress resolved, that “a committee be appointed to prepare and digest the form of a confederation to be entered into between        these colonies; ” and on the next day a committee was accordingly appointed, consisting of a member from each colony. Nearly a year before this period, (viz. on the 21st of July, 1775,) Dr. Franklin had submitted to congress a sketch of articles of confederation,     which does not, however, appear to have been acted on. These articles contemplated a union, until a reconciliation with Great Britain, and on failure thereof, the confederation to be perpetual. (STORY, Commentaries on the Constitution of the United States, Book II, Origin of the Confederation, § 222) Explica melhor Philip Jenkins: While the state governments were familiar entities with well-defined responsibilities, there was less assurance about the national government, which was established under the Articles of Confederation agreed by Congress in 1777 and ratified in 1781. Indeed, the confederation was closer to an international alliance than a real federal system as each state was designated as a sovereign entity. Each also commanded a single vote in the legislature, to the disgust of the larger and more populous states which found themselves thwarted by the whims of smaller neighbors. While signatory states agreed to do certain things, such as pay taxes to the national confederation, there were no real enforcement mechanisms to make them do this. While there was a nominal president of the Congress, the office had little in common with the powerful executive of later decades.” (JENKINS, A History of the United States, p. 53) Em termos de validade procedimental, prossegue Voegelin, a Convenção da Fildadélfia foi uma assembléia revolucionária e a continuidade da ordem jurídica foi quebrada. Entretanto, enquanto o termo revolução é usado ordinariamente em conexão com os eventos de 1776 e após, é muito pouco usado em conexão com os eventos de 1789 – apesar do fato de que a continuidade constitucional foi quebrada e que nem todos os meios para se alcançar a ratificação da nova Constituição nos vários estados se deram sob os auspícios da cordialidade e da razão. A peculiaridade tornar-se-á inteligível se todo o período, desde o começo do movimento de independência até a criação da constituição de 1789, é considerado um processo social em que a nação em desenvolvimento, abrindo caminho por entre as dificuldades das relações coloniais e estatais e as dificuldades da guerra, ganhou sua fisionomia de poder e, depois dos experimentos insatisfatórios com o Congresso Continental e os Artigos da Confederação, fundou por fim a Constituição que foi válida e expressiva da estrutura de poder oficial da nova nação. Um dos impasses para o estabelecimento do poder federal envolveu a questão sobre se o Congresso seria representativo dos cidadãos ou dos estados-membros da Federação. Isto significava saber se a Virgínia, um dos estados mais populosos, teria dezesseis, de um total de noventa votos, enquanto a Georgia apenas um, ou se ambos os estados teriam o mesmo número de votos. Prevaleceu a proposta de Roger Sherman, a quem John Adams qualificou de honestíssimo; “um homem que jamais disse uma estupidez na vida”, na apreciação de Thomas Jefferson. Pelo Connecticut Compromise, o Congresso teria duas câmaras, o Senado e a Câmara dos Deputados, aquela representativa dos estados e essa, dos cidadãos. A variedade de exemplos terá esclarecido ao menos uma questão a respeito da natureza do direito. A ordem jurídica no sentido de um conjunto de regras válidas não é um objeto independente de pesquisa. É parte de um fenômeno maior que inclui os esforços dos seres humanos de estabelecer ordem numa sociedade concreta. Este fenômeno maior, outrossim, não é um composto de parte separáveis facilmente, tais como as regras válidas e o processo social. A estrutura de poder efetiva, com sua autoridade, dá a validade das regras mesmas. Controvérsias podem nascer, portanto, sobre se a validade de um dado conjunto de regras deve ser construído sob o aspecto da legalidade ou da autoridade política. A relação peculiar entre os dois componentes torna-se mais clara no caso de conflito. Em circunstâncias ordinárias, os procedimentos emendatórios previstos na constituição serão suficientes para absorver as mudanças menores na estrutura de poder efetiva e para fornecer a continuidade de validade que expressa, no tocante à ordem jurídica, a existência contínua da sociedade que tem essa ordem. Quando as mudanças na estrutura de poder, todavia, atingem níveis revolucionários, uma quebra na continuidade da validade pode parecer desejável como a expressão adequada para a quebra na continuação da estrutura de poder. No entanto, quebras na continuidade da estrutura de poder são fenômenos comuns dentro da continuidade da sociedade.

X        A Regra e a Duração da Ordem.

A saída para a aporia representada pelo paradoxo zenônico do qual já falamos está no reconhecimento de que a ordem jurídica, enquanto não tem status ontológico per si, é parte do processo pelo qual uma sociedade torna-se existente e preserva-se numa existência ordenada. Nesta entidade maior, a sociedade, e enquanto dela faz parte, é que o direito existe. No entanto, há questões no tocante à maneira com que o ordenamento jurídico se insere na sociedade, que precisam ser respondidas. E a mais importante delas é: Como é possível, ontologicamente falando, que regras tenham uma função na existência da sociedade e em seu processo de ordenação? De acordo com Voegelin, as regras só podem ter uma função na sociedade se elas são reconhecíveis, se são situações e eventos típicos, se as situação e eventos se repetem, e se eles se repetem com tal freqüência em conexão que a própria conexão adquire o caráter de um tipo reconhecível e que pode ser expresso em “regras.” Na terminologia voegeliana, a situação é uma espécie de condição para que o evento ocorra, de modo que quando a situação está presente o evento invariavelmente decorre. A ordem de uma sociedade tem uma estrutura discernível de elementos típicos, de situações e elementos típicos, e de conexões típicas entre eles. Se a sociedade fosse um fluxo amorfo, sem uma estrutura de elementos constantes e recorrentes, as regras não teriam uso porque não teriam campo de aplicação. É porque existe ordem na sociedade que as regras são necessárias, elas ajudam que a ordem subsista. Se, por exemplo, os indivíduos A e B se dirigissem ao juiz para que esse resolvesse um conflito entre eles, porém se a coisa em disputa não tivesse duração, a decisão do magistrado cairia no vazio, poderia no máximo ensejar uma compensação. Pior, se a organização da vida de A e B mudasse completamente do dia para a noite, a questão de saber quem tem direito sobre a coisa em disputa não teria mais o menor interesse e perderia o sentido. É porque existe uma duração relativa das vidas de A e B, da organização de suas vidas e das coisas que disputam, que a disputa jurídica lhes interessa e o direito tem um papel a cumprir. Não se pode dividir a ordem jurídica em regras essencias e não essenciais, consideradas as regras genéricas como essenciais e as regras que individualizam ou regulam a regra genérica como não essencial. Não faz sentido essa divisão, pois as decisões individuais nos casos concretos são tão essenciais quanto quaisquer regras genéricas, porque a duração da ordem social concretiza-se e depende da ordem na vida de seus membros singulares. “A estrutura duradoura da ordem é a estrutura da existência humana em sociedade”[26] (VOEGELIN, 1991, p. 41). Os principais componentes dessa estrutura são a organização do homem em família e dentro de sua casa, sua existência utilitária através do trabalho em geral, e sua existência espiritual e intelectual na sociedade política. Analisando ainda a Política de Aristóteles, Voegelin confirma que a ordem de uma pólis não se dá tal qual a ordem num ser orgânico.[27] A sociedade, essa é uma lição importante para qualquer estudante iniciante em filosofia, não é um organismo vital. O conceito de forma que Aristóteles utiliza para designar a constituição da sociedade só pode ser entendido de maneira analógica; rigoroso e denotativo o conceito de forma serve apenas para designar as espécies animais e vegetais. As forças que desenham a estrutura de poder de uma sociedade podem mudar, porém a sociedade continuará sendo a mesma. Essa é mais uma diferença entre um organismo vivo e uma sociedade. Naquele, quando essa transformação acontece, a coisa também se transforma. O exemplo mais claro é o da lagarta que se transforma em borboleta. Uma vez borboleta, ela não é mais lagarta. A sociedade, ao revés, se substituir a sua constituição ou a sua estrutura de poder duradoura, pode continuar sendo a mesma sociedade. “A organização do processo legislatório (…) e a configuração das forças sociais que operam o processo num dado tempo não são idênticas com a natureza da ordem na sociedade”[28] (VOEGELIN, 2001, ps. 41-42). Cabe então a pergunta: Se a sociedade e sua ordem não são idênticas a uma determinada constelação de poder e seu processo legislatório, até onde se cavará na ordem da sociedade para encontrar a unidade última da qual as constelações de poder do momento são apenas subdivisões? Sociedade é um grupo de pessoas organizadas em cooperação inteligente. O mero instinto gregário não dá conta de explicar o “ser social” do homem. Homens que vadiam em bandos, com medo da violência que lhe podem causar por estar só, bem, mal se pode dizer que formam uma sociedade. Se não é um ser de origem celestial que organiza em cooperação inteligente o grupo humano – Adão, por exemplo –, então o próprio homem o faz. Nem todos os homens organizam o grupo, alguns apenas. Isso vai sem crítica, funciona assim. Na pior das hipóteses, poder-se-ia pensar num grupo humano organizado por adultos, de cuja organização se valem, sem nela ter voz, as crianças. Há, portanto, uma elite de homens que organizam. E quando se fala em inteligência, cooperação inteligente, quer-se dizer que a cooperação teve que ser pensada. Essa elite de homens tanto mais eficaz será em seu projeto quanto melhor for capaz de pensar a organização. Que essa elite de homens mude, que uma nova elite passe a dar sua contribuição à organização recebida, não muda o fato de que aquela cooperação inteligente dos homens continua, embora com os contornos diferentes que a nova elite imprimirá. Não se deve pensar que a elite seja meramente política, claro. Mais correto seria pensá-la como o conjunto dos brâmanes e dos xátrias que se aventuram a ser brâmanes, um José Dirceu, por exemplo, político que pensa a organização social. No capítulo Sociologia das castas, sossegue o leitor, explicar-se-á com maiores detalhes quem são os brâmanes e os xátrias. Por ora, saiba que o brâmane é quem forma o imaginário coletivo, enquanto o xátria é o político, que se vale do imaginário para ordenar a sociedade. Aristóteles enxergou que a sociedade não se resume às constelações de poder que ora a dominam. Questão tratada tanto por Platão quanto por Aristóteles foi a do ciclo das formas de poder que se sucedem nas pólis gregas. Toynbee alargou o objeto de estudo considerando todo um conjunto civilizacional como a unidade da ordem. Não obstante, resta o problema da ordem em toda a humanidade, problema esse que se torna agudo em certos momentos quando civilizações entram em choque, ou em que um Império – o Romano é o exemplo perfeito – tem de adequar dentro de sua unidade de poder várias unidades de ordem social.

XI     O Dever no Sentido Ontológico.

As regras podem ser usadas para a ordenação da sociedade porque a ordem da existência humana na sociedade tem o caráter da duração. Estabelecido esse ponto, a pergunta a ser feita é: Como as regras são usadas para o propósito da ordem social? No capítulo anterior procuramos analisar não a regra jurídica, mas aquela que verificamos pela constância dos eventos e acontecimentos. As regras legais, entretanto, foram feitas para serem “normas.” As sociedades dependem para sua gênese, sua existência harmônica duradoura e sobrevivência, das ações dos seres humanos que a compõem. Afirma Voegelin que a natureza do homem e a liberdade de sua ação para o bem e para o mal são fatores essenciais na estrutura da sociedade. “A ordem de sua existência não é nem um mecanismo nem um organismo, mas depende da vontade do homem de especificá-la e mantê-la” (VOEGELIN, 2001, p. 43). Além disso, continua o filósofo, a ordem da sociedade não pode ser uma cópia ou um modelo abstrato que aplicamos à realidade. Ela deve ser descoberta. Existe na construção da ordem a tensão que envolve o pensado e o que se conseguiu atingir. A última fonte desta tensão é um conjunto de experiências que Voegelin diz que o trabalho sobre a natureza do direito poderá apenas prefigurar. O homem tem a experiência de participar de uma ordem de seres que incluem não apenas ele mesmo, mas também Deus, o mundo e a sociedade. Civilizações antigas articularam essa experiência em símbolos, como os já indicados maat egípcio, o tao chinês, ou o nomos grego. O homem também experimenta a ansiedade de perder sua participação nessa ordem do ser. Por fim, ele experimenta essa possível perda, bem como a harmonia com a ordem do ser, como se dependesse de sua ação. Ou seja, depende de sua liberdade e responsabilidade construir uma ordem do ser da qual ele consiga participar harmonicamente. Quando Voegelin se refere à “tensão” na ordem social, ele tem em mente essa classe de experiências, que são bem traduzidas na linguagem corrente como o “fardo” que o homem deve carregar. Jesus Cristo diria: “Tome cada dia a sua cruz e siga-me” (2006, Lc 9: 23, p. 1359). A fim de ligar essas tensões com o problema da “normatividade” das regras legais, devemos chamá-las de o Dever, no sentido ontológico.

XII  A Regra enquanto Norma.

O Dever, portanto, é a tensão, na experiência, entre a ordem do ser e a conduta do homem. Na órbita desta tensão, regras relacionadas à ordem social são mais do que observações empíricas a respeito da constância de ações ou eventos. Dado que o problema da ordem existe em virtude da tensão entre a conduta empírica e a verdadeira ordem, as regras legais, sejam elas de caráter geral ou específico — para um caso concreto –, têm o caráter de projetos de ordem. Tenha ela ou não o enunciado “Você deve” ou “Você não deve,” a norma tem esse significado quando cria os tipos aos quais a conduta humana deve se adequar. “A famosa “normatividade” da regra deriva, portanto, da tensão ontológica real na ordem social.” (VOEGELIN, 2001, p. 44) São três os componentes dessa normatividade: Em primeiro lugar, a norma pretende dar uma resposta ao que “precisa” ser feito. Quando descreve um tipo de ação, ela diz o que deve ser feito, ou, no caso das normas penais, o que não deve ser feito. Sob esse aspecto, a regra é uma proposição referente ao Dever no sentido ontológico. Isto é tão óbvio que jamais deveria ter se tornado um problema. Inventa-se uma mentira em prol da técnica porque assim, crê-se, facilita-se a execução do direito.[29] Há pessoas como eu, no entanto, que não se contentam com a descrição “se A, logo B”, mas querem saber por que é assim.  Esta era filosoficamente frustrada tem que se debruçar sobre questões pueris, que qualquer criança de castigo cujo motivo razoável lhe foi explicado intuitivamente já resolveu. Mas a regra não tem apenas o objetivo de demonstrar o Dever da ordem. Ela tem, em segunda lugar, o objetivo de ser efetivamente cumprida  pelos membros da sociedade. Para Voegelin, portanto, a norma contém um apelo àqueles a quem é endereçada para que realizem esse Dever em suas vidas. Espera-se que os destinatários da norma realizem concretamente em suas vidas a ordem da sociedade conforme delineada pela regra. Não obstante, a informação sobre a verdade da ordem e o apelo para que os membros da sociedade pratiquem essa ordem não exaurem o problema da normatividade. A norma inclui, como um terceiro elemento, a presunção de ser conhecida. Como diz o adágio romano antigo, nemo jus ignorare censetur. No direito brasileiro, esse componente da norma é reconhecido no art. 3º da Lei de Introdução do Código Civil. Voegelin enxerga três componentes da norma, o que rapidamente traz à lembrança a teoria tridimensional do direito, de Miguel Reale. Não há razão, entretanto, para avançar em demasia a trilha de comparação entre os autores. Para Reale, o direito “não é puro facto, nem pura norma, mas é o fato social na forma que lhe dá uma norma racionalmente promulgada por uma autoridade competente, segundo uma ordem de valores.”[30] Antes, ele afirma: a) Facto, valor e norma estão sempre presentes e correlacionados em qualquer expressão da vida jurídica, seja ela estudada pelo filósofo ou o sociólogo do direito, ou pelo jurista como tal, ao passo que, na tridimensionalidade genérica ou abstrata, caberia ao filósofo apenas o estudo do valor, ao sociólogo o do facto e ao jurista o da norma (tridimensionalidade como requisito essencial ao direito). b) A correlação entre aqueles três elementos é de natureza funcional e dialéctica, dada a <<implicação-polaridade>> existente entre facto e valor, de cuja tensão resulta o momento normativo, como solução superadora e integrante nos limites circunstanciais de lugar e de tempo (concreção histórica do processo jurídico, numa dialética de complementaridade). (REALE, 2003, p. 70) Nesta passagem Reale quer distinguir sua teoria daquelas que viam no fenômeno jurídico os mesmos três elementos discriminados por ele acima mas de maneira a separá-los e até a opô-los, não vislumbrando a unidade essencial do fenômeno jurídico, onde os elementos interagem dialeticamente. As teorias de Voegelin e Reale assemelham-se no que o último chama de valor e de norma. Voegelin acredita que o mandamento legal carrega um ditado de valor sobre o que se deve ou o que não se deve fazer. Para Reale, a norma é o resultado da tensão entre fato e valor, ou que Voegelin chamaria de tensão entre o Dever no sentido ontológico e a sociedade empiricamente existente. O elemento fato na obra de Reale, todavia, está mais relacionado a um fato jurídico concreto, enquanto a obra de Voegelin debruça-se sobre a organização social empírica como um todo. Não há uma oposição entre as duas teorias, o que acontece é que eles não estão analisando exatamente o mesmo objeto. Parece-nos que a teoria de Reale, preciosa o quanto é, revela antes a visão do operador do direito diante de uma questão jurídica concreta, ao passo que no esforço de Voegelin enxerga-se o pesquisador aristotelicamente desinteressado querendo descobrir o quid est do direito.

XIII          Haverá também uma correlação entre a teoria tridimensional do direito e a trinca experiência, valor e significado, comentada no Livro de Urântia?

“Há apenas três elementos na realidade universal: o fato, a idéia e a relação. A consciência religiosa identifica essas realidades como ciência, filosofia e verdade. A consciência filosófica estaria inclinada a ver essas atividades como razão, sabedoria e fé — a realidade física, a realidade intelectual e a realidade espiritual.  O nosso hábito é designar essas realidades como coisa, significado e valor.” (Livro de Urântia, 2007, p. 2094) Estão claras as correspondências do fato e do valor. Como, porém, se analogizam o significado e a norma? A norma seria o significado que a sociedade vê no fato à luz de valores. Por exemplo, a morte do pai significará, por causa da norma, a transferência de seus bens para o filho, porque a sociedade valoriza a relação filial. Voegelin parece ter dado, neste estudo sobre o fenômeno do direito, bastante importância à sua face objetiva. Mas não percebeu, ou pelo menos não falou sobre, a esfera, a realidade de sua vivência subjetiva pelos homens. As normas conferem-lhes direitos subjetivos, ou situações subjetivas, como prefere Miguel Reale (reservando àqueles uma acepção mais estrita), que as define como “a possibilidade de ser, pretender ou fazer algo, de maneira garantida, nos limites atributivos da regra de direito”. Direitos subjetivos seriam possibilidades concretas de ação ou inação estipuladas numa norma, portanto. Ação é a mudança deliberada de um estado de coisas. Fiquemos, por ora, com essa noção.

XIV     O Caráter Público da Norma Legal.

Uma série de problemas aparece por causa da presunção de publicidade que a norma traz, tanto na prática da ordem quanto em teoria legal. Uma proposição que verse sobre uma verdade da ordem deve ser formulada por alguém, e o seu apelo, para ser aceito, deve ser dirigido a um destinatário. O significado normativo de uma regra envolve pelo menos duas pessoas face a face num ato de comunicação, ainda que uma das pessoas seja um eu reflexivo que formula a regra a ser aplicado pelo eu ativo. A regra legal é criada num procedimento complicado que obscurece as contribuições pessoais para a sua composição. Podemos crer que um grupo fez um “lobby” para que seus interesses pessoais fossem contemplados, tornando a ordem lucrativa para si e desvantajosa para o resto da sociedade, de maneira que a regra seria deveras falsa. Pode-se supor ainda se, em vista da regra ter uma série de defeitos técnicos, e isso se vê muito num Brasil em que os legisladores não têm mais o apreço que tinham pela redação clara, foi feito um esforço sincero de formular uma verdade a respeito da ordem social. Pode-se ter a mais vaga noção de quem concebeu a regra – e ainda assim ela é considerada válida caso determinados procedimentos tenham sido seguidos para a sua elaboração. Otto Von Bismarck costumava dizer que se os homens soubessem como as linguiças e as leis são feitas, não comeriam as primeiras, nem obedeceriam a essas. Voegelin diz que tudo parece um jogo de faz-de-conta. Deveras, há um elemento de jogo na situação. Platão sabia disso quando, nas Leis, falou de um “jogo sério.” Esse jogo é levado a sério em toda sociedade. As regras legais são consideradas normas de ordem. O processo legislatório é parte ontológica da maneira com que a sociedade tem sua existência ordenada. A presunção de que as normas são conhecidas é mais do que uma teoria de ficção; toda sociedade elaborou meios para tornar efetiva a comunicação sobre suas normas. Uma lei só é válida se tornada pública. Alguns países têm gazetas especiais para a publicação dos estatutos, e sua constituição pode estabelecer que a lei só entrará em vigor passado um determinado período de tempo. No Brasil, o Diário Oficial é responsável por informar sobre novas leis. O momento da entrada em vigor de uma lei depende do que a própria estabelece no seu texto ou ocorre 45 dias após sua publicação, conforme  disposição expressa na Lei de Introdução ao Código Civil. Não obstante o aparato montado, o cidadão comum não ficará muito convencido, pois ele jamais em sua vida olhará essas publicações. Ele dirá que, apesar do esforço, apenas os advogados sabem sobre a lei – e sua observação poderá se traduzir numa reclamação sobre favorecimento, a qual, para Voegelin, é injusta. A função mesma do advogado, segundo ele, é preencher o vácuo que existe entre a máquina de publicação e o conhecimento do membro ordinário da sociedade. Conhecer o direito requer uma dedicação profissional que absorve todo o homem. O cidadão cujo tempo e energia são absorvidos num trabalho de sua especialização não pode ser ao mesmo tempo um “expert” jurídico. Quando o homem comum se depara com uma questão legal, ele precisa do assessoramento de um advogado. A profissão jurídica tem, portanto, uma função pública de manter a ordem da sociedade enquanto mediadora da ordem jurídica e do conhecimento do cidadão ordinário a seu respeito. À luz dessas observaçõs, a presunção de que o cidadão conhece o direito não parecerá tão fantástica.

XV    Os Dois Tipos de Projetos.

Se, em primeiro lugar, enxergamos a ordem jurídica dentro do processo legislatório, depois foi necessário posicioná-la dentro do contexto mais amplo da sociedade a cujos membros a norma é dirigida, e assim as normas adquiriram o caráter de projetos para a ordem concreta da sociedade, em cujo coração descobrimos o Dever na acepção ontológica, a tensão na sociedade que reclama esforços refinados para criar e manter a ordem. Agora, devemos tomar ciência de que o processo legislatório é apenas um dentre os esforços dirigidos a projetar e concretizar a ordem da sociedade. Toda a sociedade está atenta a projetos de ordem em variados graus de articulação e racionalidade, desde reformas de boa-vontade até o ressentimento violento, desde a pressão efetiva até a raiva impotente. Duas classes de fenômenos são de interesse para o estudo jurídico: Os projetos destinados a ser realizados empiricamente numa sociedade concreta e os projetos que se destinam a servir de modelos de uma ordem justa, mas com pouca expectativa de serem cumpridos concretamente. O renomado constitucionalista carioca Luiz Roberto Barroso delineou três tipos de normas constantes da Constituição e aproveitamos sua classificação para demonstrar a semelhança com a teoria de Voegelin. Diz ele: Com fundamento na idéia de Constituição(…), tem-se que as normas constitucionais enquadram-se na seguinte tipologia:

  1. Normas constitucionais que têm por objeto organizar o exercício do poder político: NORMAS CONSTITUCIONAIS DE ORGANIZAÇÃO;
  2. Normas constitucionais que têm por objeto fixar os direitos fundamentais dos indivíduos: NORMAS CONSTITUCIONAIS DEFINIDORAS DE DIREITO;
  3. Normas constitucionais que têm por objeto traçar os fins públicos a serem alcançados pelo Estado: NORMAS CONSTITUCIONAIS PROGRAMÁTICAS. (BARROSO, 2006, p. 90)

Os dois primeiros tipos de normas visualizados por Barroso pertenceriam à primeira classe de fenômenos que Voegelin admitiu. Tanto as normas de organização do Estado quanto as normas que fixam os direitos são projetos que visam a ser efetivados empiricamente na sociedade, ao passo que as normas programáticas, as quais “têm por objeto estabelecer determinados princípios ou fixar programas de ação para o Poder Público”[31] (BARROSO, 2006, p. 114), se enquadram no conjunto voegeliano de projetos que se destinam a servir de modelos de uma ordem justa, mas que não tem o condão de ser aplicados ou exigidos de imediato.

XVI Os Processos Legislatórios Empírico e Filosófico.

No momento, não preocupam mais os resultados do trabalho platônico-aristotélico, mas sua intenção. Os filósofos desenvolveram teorias da ordem que não esperavam fossem aplicadas como regras válidas na sociedade em que viviam.[32] Uma vez escrita a obra, o trabalho está feito. Se houver condições históricas para que a projeção da ordem se realize empiricamente, tanto melhor, porém nem Platão nem Aristóteles acreditavam que suas teorias da ordem verdadeira pudessem ser aplicadas. É interessante lembrar a Voegelin que Platão, já tendo passado pelos ardores da juventude, e contando por volta dos trinta e cinco anos, envolveu-se em episódio interpretado por alguns estudiosos como uma tentativa de golpe na pólis de Siracusa, e por isso foi vendido como escravo. O renomado historiador de filosofia Frederick Copleston conta a história: Plato was invited to the court of Dionysius I, Tyrant of Syracuse, where he became a friend of Dion, the Tyrant’s brother-in-law. The story goes that Plato’s outspokenness excited the anger of Dionysiusm who gave him into the charge of Pollis, a Lacedaemonian envoy, to sell as a slave. Pollis sold Plato at Aegina (at that time at war with Athens), and Plato was even in danger of losing his life; but eventually a man of Cyrene, a certain Anniceris, ransomed him and sent him to Athens. (COPLESTON, 1993, p.129) Platão conseguiu se livrar da escravidão e, de volta à Atenas, fundou a Academia para educar a elite ateniense e também a estrangeira. O homem que se sentia poderosamente atraído pela vida política desde jovem[33] nunca mais se envolveu com ela, a não ser para ensiná-la. Os estudiosos que enxergam em Platão um projeto de sociedade totalitário, compartilhando de tese que se tornou popular pela obra “A sociedade aberta e seus inimigos”, de Karl Popper, deveriam meditar nas seguintes frases constantes do livro VII da República: “E então nosso Estado (…) será administrado com um espírito distinto do de outros  Estados, nos quais os homens lutam entre si a respeito de sombras apenas e ficam   distraídos numa batalha pelo poder, que a seus olhos é um bem máximo. Enquanto que a verdade é que o Estado onde os governantes são os mais relutantes em governar quase sempre é o melhor, e o Estado onde eles são mais sequiosos, o pior.[34]” (Plato, Book VII, tradução minha) Dito isto, devemos, entretanto, dizer que não concordamos inteiramente com Platão. O Estado deve ser governado por pessoas preparadas, competentes e leais, mas, sobretudo, que considerem uma grande honra e tenham enorme satisfação pessoal em fazê-lo. George Washington, em seu Farewell address, conta que já ao final do primeiro mandato queria ter voltado para seu descanso de aposentado, e que naquele novo momento, “o estado de seus interesses [dos cidadãos] não mais torna a busca dessa propensão incompatível com o sentimento de dever ou retidão,” isto é, “enquanto a escolha pessoal e a prudência convidam-me a deixar a cena política, o patriotismo não me proíbe”. Ele deixou a vida pública juntando-se a seus fellow citizens na vida civil. Mas durou pouco. Devido ao risco de guerra contra a França, o presidente John Adams convocou Washington a reassumir seu posto de lieutenant general, cargo que ocupou até a morte no ano seguinte.[35] Voegelin considera que o filósofo é o legislador da verdadeira ordem, e rivaliza com o legislador da sociedade empírica cuja ordem carrega uma verdade apenas relativa. O tema merece ulteriores considerações. Voegelin parece querer dizer que quem cria os conceitos e critérios pelos quais as próprias leis jurídicas serão concebidas é o filósofo. Dizer que o filósofo legisla, se não é uma figura de linguagem, indica com certeza que ele desenvolve teorias que são o pano de fundo em que as leis jurídicas são criadas. Miguel Reale, entretanto, o nosso jurista — como sói acontecer, aliás –, além de teorizar sobre poder e direito, também colaborou para a conformação de nossa ordem elaborando projetos de lei, inclusive o do Código Civil, que foi todavia bastante modificado até sua aprovação. Qualquer ordem política será, segundo o critério voegeliano, legislada por pensadores, sejam eles filósofos ou não. Nem o mais inveterado positivista negaria que a ordem comunista russa deve muito a Karl Marx. Kelsen, por sinal, teve papel de proa na redação da Constituição austríaca de 1920. A própria aplicação prática do positivismo jurídico depende de pensadores que o sustentem ao longo do tempo, o que basta para demonstrar que há um substrato de idéias influenciando a operação do direito. O problema do direito não se exaure com a mera existência de uma sociedade sob uma ordem qualquer, mas só se completa com a análise dessa mesma sociedade e sua ordem histórica pelos parâmetros e critérios fornecidos pela ordem verdadeira desenvolvida pelo filósofo. Confúcio ensinaria “que o modelo verdadeiro da civilização temporal é como a imagem, refletida de um espelho, da ordem celeste eterna.” (LIVRO DE URÂNTIA, doc. 94, 6, p. 1034) Os dois processos legislativos, o empírico e o filosófico, estão relacionados um com o outro. Um rápido olhar sobre as Leis de Platão mostra que as leis não têm um papel significativo em comparação com os preâmbulos, ou seja, com a exposição pormenorizada dos motivos que deram origem àquela lei. Caio Mário da Silva Pereira recorda esse aspecto ressaltado por Platão no capítulo Interpertação da Lei, da sua obra Instituições de Direito Civil: Pesquisa-se a razão da norma, e verifica-se o que se pretendeu obter com a sua votação.(…)A lei tem em vista um objetivo e se justifica por uma razão; a lei foi votada em determinado momento e não em outro; a lei traduz as idéias políticas, filosóficas e econômicas dominantes no meio social de que se destina a regular as atividades. O intérprete não pode desprezar todos esses fatores, ao precisar o que a lei deve conter efetivamente. Tem de indagar qual a sua ratio(…). (PEREIRA, Instituições de Direito Civil, vol. 1, ps. 128-129) Intérpretes modernos, continua Voegelin, reclamam que Platão não desenhou um projeto de ordem acabado, porém fragmentário, faltando detalhar-lhe os preceitos legais, ao que o próprio Platão responde que qualquer um que haja entendido a essência da ordem é capaz de elaborar bons projetos de lei.[36] Não obstante ser o modelo da ordem secundário em relação à análise da essência, ele não é supérfluo. A análise do filósofo nasce da resistência da ordem substantiva que encontra dentro de si frente à desordem ambiente. O projeto do filósofo e a ordem empírica não estão em franca oposição; estão em verdade ligados por projetos transitórios que tratam de forma mais ou menos precisa a realidade do Dever. Por isso, Platão, não apenas desenvolveu seu projeto de pólis em que os filósofos são reis, mas também concebeu, nas Leis, uma pólis reserva, em que os governantes, embora não sejam eles próprios filósofos, estão muito bem treinados em filosofia de modo a conseguir fazer leis que passam por um crivo filosófico.[37] Giovanni Reale, importantíssimo estudioso da filosofia clássica, auxilia à compreensão da política platônica no livro dedicado a ele: O que poderia dizer-nos ainda em matéria política o nosso filósofo depois da grandiosa construção do Estado Ideal? A resposta é simples se tivermos presente, de modo particular, as finalidades da Academia. A Escola que Platão fundou tinha por alvo educar, essencialmente, homens políticos, homens formados de um modo novo para um novo Estado. A atuação histórica do ideal desenhado na República era impossível, e o próprio Platão declarou-o explicitamente realizável somente na dimensão espiritual (na nossa alma). De outra parte, os tempos não estavam ainda maduros para que fosse aprofundada a intuição das duas Cidades (terrena e celeste) e do homem como cidadão de duas Cidades. Era necessário que o filósofo oferecesse, além do modelo do estado ideal, pontos de referência mais realistas, indicações historicamente mais realizáveis e que a problemática política fosse reproposta em outra ótica. Justamente para responder a essas exigências, Platão amadureceu o desenho do “segundo Estado”, ou seja, do Estado que vem depois do Estado ideal: um Estado que, à diferença do primeiro, leva em conta não somente o como o homem deve ser, mas o como ele é efetivamente: um Estado, em suma, que possa mais facilmente encarnar-se na história. (REALE, 2007, p. 275) Platão chegou mesmo a conceber uma terceira ou quarta possibilidades de pólis bem governada, para o caso de a segunda ser um fardo muito pesado para o homem pôr em prática.[38] Socialmente falando, o projeto filosófico grego, em relação aos próprios gregos, redundou num tremendo fracasso. “Os homens comuns daqueles tempos não poderiam captar a filosofia grega da compreensão de si, e de uma Deidade abstrata, nem estavam muito interessados nisso; eles antes buscavam uma promessa de salvação, e que viesse junto a um Deus pessoal que pudesse ouvir as suas preces. Eles exilaram os filósofos(…)”. (Livro de Urântia, 2007, doc. 98, p. 1079) “Por meio do pensamento rigoroso, os gregos tentaram alcançar uma consciência de segurança que serviria como substituta da crença na sobrevivência, mas fracassaram completamente. Apenas os mais inteligentes, entre os das classes mais elevadas dos     povos helênicos, puderam compreender esse novo ensinamento; as fileiras da massa, progênie escrava de gerações anteriores, não tinham capacidade para receber esse novo substituto para a religião.” (Livro de Urântia, 2007, doc. 98, pp. 1078-1079)[39] A preocupação principal, entretanto, não são os detalhes da obra de Platão, porém seu princípio: A ordem empírica da sociedade se realiza em degraus de realidade conforme se articula a tensão do Dever no sentido ontológico. A normatividade da lei é uma participação substancial da verdadeira ordem. Não é por que uma lei foi aprovada segundo os trâmites legislatórios especificados que ela será lei sem qualquer questionamento. Se o seu grau de substancialidade, ou seja, o seu grau de participação no Dever no sentido ontológico, cair a um nível muito baixo, pode haver uma insatisfação ao ponto de assumir contornos revolucionários. É apropriado observar que Cícero, o grande senador romano, que pagou com a própria vida na defesa da República, não compartilha exatamente do pensamento de Voegelin e Platão. Para ele, a filosofia será sempre um subsídio da arte política. Vejamos suas palavras: “Mas não é bastante ter uma arte qualquer sem praticá-la. Uma arte qualquer, pelo menos, mesmo quando não se pratique, pode ser considerada como ciência; mas a virtude afirma-se por completo na prática, e seu melhor uso consiste em governar a República e    converter em obras as palavras que se ouvem nas escolas. Nada se diz, entre os filósofos, que seja reputado como são e honesto, que não o tenham confirmado e exposto aqueles pelos quais se prescreve o direito da República. De onde procede a piedade? De quem a religião? De onde o direito das gentes? E o que se chama civil, de onde? De onde a justiça, a fé, a eqüidade, o pudor, a continência, o horror ao que é infame, e o amor ao que é louvável e honesto? De onde a força nos trabalhos e perigos? Daqueles que, informando esses princípios pela educação, os confirmaram pelos costumes e os sancionaram com as leis. Perguntando-se a Xenócrates, filósofo insigne, que conseguiam seus discípulos, respondeu: “Fazer espontaneamente o que se lhes obrigaria fazer pelas leis.” Logo, o cidadão que obriga todos os outros, com as penas e o império da lei, às mesmas coisas a que a poucos persuadem os discursos dos filósofos, é preferível aos próprios doutores. Onde se poderá encontrar discurso de tanto valor que se possa antepor a uma boa organização do Estado, do direito público e dos costumes? (…). (CÍCERO, 1973, pp. 147 e 148)[40] Nota-se que Cícero concede valor à filosofia enquanto ela pode ser praticada na política.[41] Seu entendimento não vai de encontro ao que foi apresentado, porém dá um novo quadro de referência, considerando a política como eminente em relação à filosofia. Voegelin estava consciente disso: “Romans like Cicero understood the problem quite well. In his De re publica, for instance, he deliberately opposed the Roman style of dealing with matters of political order (status civitatis), again a princep civis, Scipio, takes his stand against Socrates. Scipio refuses to  discuss the best order in the manner of the Platonic Socrates; he will not build up a “fictitious” order before his audience but will rather give an account of the origins of Rome. The order of Rome is superior to any other – this dogma is heavily put down as the condition of the debate. The discussion itself may freely range through all topics of Greek learning, but this learning will have meaning only in so far as it can be brought usefully to bear on problems of Roman order. (…) If a choice must be made             between the two ways of life, the vita civilis of the statesman is preferable to the vita quieta of the sage.” (VOEGELIN, 1987, p. 90) O Livro de Urântia também aponta que o homem mais digno de reverência é o político. “Nos estados avançados, o serviço político é considerado como sendo digno da mais elevada devoção dos cidadãos. A maior ambição dos cidadãos mais sábios e mais nobres é ganhar o reconhecimento civil, é ser eleito ou apontado para alguma posição de confiança no governo, e esses governos conferem as suas mais elevadas honras de reconhecimento por serviços aos seus servidores civis e sociais. Na seqüência da ordem, as honras são concedidas em seguida aos filósofos, aos educadores, aos cientistas, aos industriais e aos militares. Os pais são devidamente recompensados pela excelência de   seus filhos; e os líderes puramente religiosos, sendo os embaixadores de um Reino espiritual, recebem as suas recompensas reais em outro mundo.” (Livro de Urântia, 2007            documento 71, pp. 803 e 804)

XVII    A Sociedade como uma Entidade Auto-Organizadora.

As regras têm a pretensão de exprimir uma verdade sobre a ordem, elas se referem em última instância ao Dever em sentido ontológico, isto é, à tensão entre a ordem do ser e a parte dessa mesma ordem que precisa ser estabelecida na sociedade pela ação humana. A mera definição do Dever por Voegelin já implica uma conclusão: A ordem da sociedade sempre ficará aquém da ordem do ser, a qual só pode ser perfeita na vida do homem individual, e mesmo essa ocorre em casos raríssimos. Essa ordem do ser perfeita na vida de um poucos indivíduos dedicados, quando se transplanta para a ordem social, será imperfeita porque a sociedade não é um organismo, mas um conjunto de seres humanos, a maioria deles imperfeitos.[42] No coração da normatividade, encontram-se duas pessoas que criam regras para o homem: Em primeiro, Deus, e depois, o homem reflexivo. Além desse núcleo ontológico, outras pessoas podem dirigir-lhe normas: O padre, amigos, pais, senhores, filósofos e oficiais do governo. Entretanto, Voegelin insiste em afirmar, essas pessoas não criam regras com autoridade normativa. Existe um ius divinum et naturale, mas definitivamente não existe um ius sociale et historiale autônomo. A criação e aprovação de regras sociais, gênero do qual as normas são espécies, são um processo da sociedade mesma. Voegelin reclama, entretanto, que é muito difícil extrair as implicações dessa simples observação porque a análise está obstruída pela linguagem cotidiana que se preocupa mais com as tensões no campo social do que com a unidade do campo que é fissurado pela tensão.[43] (VOEGELIN, 1991, p. 56) Acostumamos a falar nas dicotomias de governante e governado, legislador e legislado, comandante e soldado, pai e filho[44], mas esquecemos da entidade da sociedade em que as respectivas relações de comando e obediência ocorrem. A existência humana é ontologicamente social, porque o nascimento e a criação dentro de uma família são ontologicamente a maneira do homem de existir, e não produto de escolha. A alternativa à existência dentro de uma sociedade, sem contar o suicídio, não é a existência solitária mas a existência em outra sociedade concreta. Sendo assim, uma sociedade tem sua razão de ser apenas enquanto permite a seus membros ordenarem suas vidas na verdade. A sociedade existe desde que desenvolva um processo auto-ordenatório, sendo o processo auto-ordenatório seu modo de existir. Alguém pode dizer que a sociedade cria as regras sociais para si própria. Pode-se considerar essa afirmação como um nonsense, porque a regra é algo que uma pessoa cria para outra pessoa. Mas, ajunta Voegelin, é precisamente esse nonsense que pode melhorar a nossa consciência da dificuldade da análise da ordem jurídica, isto é, do caráter impessoal da regra legal. A norma não tem nem um legislador pessoal nem um destinatário pessoal. Esta dificuldade não pode ser superada erigindo a sociedade, o estado ou o soberano num legislador pessoal fictício. Não se pode tampouco aceitar a definição da regra legal como uma regra genérica que carrega consigo a diferença específica da sanção pela força do governo. A classificação do fenômeno não tem utilidade quando um problema ontológico requer análise.

 

XVIII A Representação da Sociedade.

O problema que se coloca, então, é: Como pode uma sociedade, que não é uma pessoa, criar regras?  A nosso ver, todo estudante de direito deveria ler a segunda metade do diálogo O Político, de Platão. Ali ele aprenderia que, embora o melhor fosse talvez prescrever para cada caso individual, o legislador obviamente não pode fazê-lo, e portanto as leis têm um caráter genérico que se afasta mais ou menos das necessidades individuais, o que gera um tensão entre os polos dos casos particulares e das prescrições genéricas dos legisladores. Como governantes de uma sociedade – e não de alguns indivíduos – os legisladores estão limitados existencialmente a criar regrar genéricas. Vivesse hoje, porém, Platão reconheceria a importância dos juízes para fazer o balanço entre a regra genérica e o caso individual. Mas voltemos à pergunta. Sua resposta, diz Voegelin, é clara no nível fenomênico. Uma ou mais pessoas, dentro de certas condições, emitirão sentenças que serão consideradas regras válidas para a conduta dos membros da sociedade. Nem toda sentença, é óbvio, será considerada uma regra. Voegelin dá o exemplo de alguém que quer fazer suas convicções morais estúpidas serem adotadas por outrem e recebe a resposta de que deve se meter com sua própria vida. Os pretensos legisladores, diz ele, são comuns em toda sociedade e podemos distinguí-los do verdadeiro legislador, a quem damos o status de representante da sociedade. A organização para a ação, tanto externa quanto interna, através de um representante, é a maneira pela qual a sociedade existe. O processo legislatório, assevera nosso autor, desde a constituinte até as decisões administrativas e judiciais, é a auto-organização da sociedade, por meio dos seus representantes, para a sua existência ordenada. As normas, de fato, são feitas por seres humanos. Nós as obedecemos não em respeito à condição de ser humano do seu criador, mas em referência à autoridade de representante da sociedade desse criador. Já que o legislador age como um representante, não como uma pessoa, é possível criar órgãos coletivos com o objetivo de legislar, cujos atos têm nitidamente um caráter representativo e impessoal. Eis aí, enunciada pelo filósofo, a diferença entre a lei de uma favela dominada por traficantes de drogas e a lei do Estado. Aquela muitas vezes é mais rigorosa e eficaz do que essa, porém seus criadores, que podem proibir e assinalar penas duríssimas, por exemplo, para estupros, não estão, eles próprios (pela mesma conduta), sujeitos a elas; eles estão acima da lei. No Estado, o legislador, em teoria, embora nem sempre na prática, mas às vezes também, obedece às mesmas regras que criou.

XIX      O Cálculo do Erro.

Esta representação não é mero jogo de cena, tratando-se em verdade de uma arte necessária para a existência ordenada do homem na sociedade. Seu objetivo é a realização da ordem, e esta não é o prazer de alguém, mas a organização substantiva da vida humana em concordância com a ordem do ser conforme experimentada no Dever em seu sentido ontológico. Dado que o representante, esteja ele em posição alta ou baixa no nível hierárquico do processo legislatório, é um ser humano e, como tal, falível, ele pode usar mal sua função de representante e se afastar da verdade da ordem. Esses fenômenos de mau uso do poder de governar são conhecidos por qualquer pessoa em qualquer época, sendo assim, esse problema não foi rejeitado por Aristóteles e Platão. Ambos distinguiram entre as formas boas e más de governo, conforme o governate de plantão estivesse perseguindo o bem comum ou o bem privado. As três formas boas de governo para eles são a monarquia, a aristocracia e a constituição, enquanto as degenerescências dessas são a tirania, a oligarquia e a democracia. O primeiro par é o governo de um homem apenas, o segundo o governo de uma casta, e o terceiro o governo de muitos cidadãos. Voegelin não está preocupado com o conteúdo a ser atribuído ao bem comum, mas com o fenômeno de sua formação, submetido ao objetivo de estabelecer uma ponte entre o processo legislatório e a substância ontológica da ordem. A tensão entre a substância da ordem e o possível mau uso do processo legislatório, além disso, não é apenas um objeto de contemplação para o filósofo, mas o motivo para experimentos que visem à salvaguarda institucional contra o mau uso. A separação de poderes, o “Bill of Rights”, o Judiciário independente, o sufrágio universal e a eleição de representantes para um período curto de mandato são exemplos de esquemas que buscam diminuir o mau uso do poder nos Estados Unidos da América. O Brasil, a sua vez, desde 1988, a partir da promulgação da chamada Constituição cidadã, conta com esses mesmos dispositivos que Voegelin cita. Porém, recorda ele, mesmo os melhores artifícios não estão completamente isentos de falhas, pois o balanço das instituições é ele próprio forjado por seres humanos, que, como tais, são falhos. Voegelin observa que mesmo o arranjo das eleições livres e universais se provaram decepcionantes em determinados casos, pois governos totalitários como o de Hitler conseguiram alçar-se ao poder pelo voto das urnas. Conclui Voegelin que a tensão entre a ordem verdadeira e a empírica jamais pode ser abolida, embora a discrepância entre as duas possa ser diminuída através de uma série de artifícios a um mínimo que não acarretará a revolta popular. Mesmo um representante que não seja tão bom assim é preferível a um levante violento cujas consequências não se podem medir. De fato, diz Rosenstock, any established order is better than a complete break, because there is a deep instinct of a nation for its permanent organization(ROSENSTOCK-HUESSY, 1993, p. 160). A própria Declaration of Independence dirá: “Prudence, indeed, will dictate that Governments long established should not be changed for light and transient causes; accordingly all experience hath shewn that mankind are more disposed to suffer, while evils are sufferable than to right themselves by abolishing the forms to which they are accustomed.”[45] Em toda sociedade, o processo legislatório repousa sobre o entendimento de que uma considerável margem de erro em referência à verdade da ordem deve ser permitida. Thomas Jefferson dirá, em seu oitavo State of the Union Address, que “in the transaction of their (the people’s) business I cannot have escaped error. It is incident to our imperfect nature. But I may say with truth, my errors have been of the understanding, not of intention.”[46] Sobre a França e sua revolução, e em referência à espera do povo francês para saber se o problema do país era a mera dissipação da Corte ou se tinha um caráter mais estrutural, relacionado à dependência ao clero católico romano, ao corporativismo da parentela real e à casta dos nobres, Rosenstock diz: “The grievances of the French had a deeper meaning, which no virtuous king like Louis XVI could outweigh. They endured the government of their dissipated rulers, because then it might still be doubtful whether it was a question of personal vice or of basic     rottenness. But when Louis XVI turned out to be perfectly honest, decent and brave, they started the revolution.” (ROSENSTOCK-HUESSY, 1993, p. 160) Embora haja limites para as proporções que o erro possa assumir, é preferível viver numa sociedade com graves e constantes injustiças nos casos singulares a estar sob o caos e a desordem[47]; a evolução da sociedade receptiva às contribuições de seus filósofos e sobretudo às Revelações é melhor do que a revolução. O cálculo do erro é mais um componente no caráter impessoal da lei.

XX    O Uso da Força.

Por fim, Voegelin pretende analisar o elemento ligado à validade da norma legal que muitos teóricos inclinam-se a chamar de sua diferença específica, qual seja, a sanção pela força. O uso da força para a imposição da ordem jurídica é necessária por uma série de razões, a primeira das quais é o recém discutido cálculo do erro. Tendo em vista que há uma discrepância entre a ordem verdadeira e a empírica, o uso da força é necessário para eliminar a desobediência dos cidadãos que contendem que o conteúdo da regra está em desacordo com o Dever no sentido ontológico. O exemplo mais claro fornecido por Voegelin é o do chamado contribuinte que se recusa a pagar os tributos até que os gastos do governo estejam em níveis condizentes com a razão à luz da ordem verdadeira. O debate sobre a justiça da lei acerca de tributos considerados injustos deve se ater à crítica ou à ação política, sob pena de a existência da sociedade ficar ameaçada. Ressaltamos, caso Voegelin não tenha incluído no conceito de ação política a petição jurisdicional,  que a justiça de um tributo pode também ser discutida judicialmente. O cidadão pode inclusive deixar de pagar um tributo sabendo-o manifestamente ilegal, porém deverá provar sua tese em face dos tribunais. Se não o fizer, deverá pagar o tributo acrescido de eventuais juros de mora. Henry David Thoreau, autor americano, foi preso por recusar-se a pagar o “poll-tax” e justificou-se dizendo que não hesitava em pagar um tributo para a construção de uma rodovia, por exemplo, mas discordava do tributo sem destinação específica, como o caso do “poll-tax”, o qual ele não saberia se seria utilizado para um fim justo ou não.[48] É em face dessa atitude que Voegelin se insurge para justificar o uso da força. Diz ele: “Se a existência da sociedade deve ser preservada, não se pode permitir que o debate se degenere em mera decisão individual e resistência” (VOEGELIN, 1991, p. 62). Mas não apenas a decisão individual se insurge contra uma lei genérica. Ninguém ignora o debate acerca dos state rights contra o federal government nos EUA. Antes que o judicial review tivesse se estabelecido definitivamente no caso Marbury versus Madison, em 1803[49], os famigerados Alien and Sedition Acts provocaram a Kentucky Resolution, em que se invocou, como um direito dos estados-membros, a nullification de atos do governo federal contrários à Constituição Federal. Essa figura jurídica deu nome às reivindicações e estaria na ponta da língua de secessionistas em potencial até a eclosão da guerra civil. O duelo entre Alexander Hamilton e Aaron Burr, em 1804, é um prenúncio, um símbolo fático das dissensões entre as tendências unionistas e secessionistas, que chegariam ao ponto de inflexão quando Abraham Lincoln foi eleito presidente, em 1860.[50] Em segundo lugar, a força é necessária porque a questão da verdade em relação à ordem raramente permite uma resposta segura. A estrutura de uma sociedade é infinitamente complexa e a melhor ação política a respeito de um problema específico, à luz do bem comum, será matéria de debate com prós e contras muitas vezes sem pesar para um lado, o que vai ao encontro do ensinamento de Maimônides: “This great variety and the necessity of social life are essential elements in man’s nature. But the well-being of society demands that there should be a leader able to regulate the actions of man; he must complete every shortcoming, remove every excess[51], and     prescribe for the conduct of all, so that the natural variety should be counterbalanced by the uniformity of legislation, and the order of society be well established.” (MAIMONIDES, parte 2, cap. XL) Quando a decisão for tomada, ela freqüentemente conterá um elemento de arbitrariedade. O debate não pode se estender eternamente se a sociedade quiser sobreviver, e uma vez que a decisão for tomada pelo representante, a desobediência fundada na discussão do mérito da medida não pode ser permitida. A terceira e última razão pela qual a sanção pela força é necessária tem em Aristóteles primazia teórica. Toda a organização social voltada à criação e aplicação de leis seria supérflua, diz ele, se o homem agisse em concordância com a ordem verdadeira sem a compulsão ou sua ameaça. Se o homem se eximisse de cometer açõs más por piedade ou vergonha, ou se seus colegas o admoestassem a seguir a conduta correta, o direito seria desnecessário. Mas essa, assinala Voegelin, não é a natureza do homem. Sua natureza é de ordenar sua conduta pela razão e pela consciência. Mas é da natureza do homem também não agir assim, como uma pessoa.[52] Para início de análise, o homem não vem ao mundo como uma pessoa formada, mas como uma criança. Sua personalidade é uma estrutura de alma que cresce devagar e raramente atinje a maturidade antes dos trinta. Aristóteles chama o homem plenamente amadurecido de spoudaios — entretanto quando ele fala da possibilidade de efetivar uma ordem verdadeira na pólis helênica, diz, hiperbolicamente ou não, que em nenhuma cidade grega seria possível achar cem homens maduros que formassem uma elite governante. Além das crianças, existe em toda a sociedade os “escravos pela natureza,” ou seja, homens que por uma razão ou outra jamais se tornam maduros e sempre necessitarão da pressão social, admoestações enérgicas e até a ameaça do uso da força para mantê-los no bom caminho. Cabe aqui, na trilha de Voegelin, desfazer um erro cometido em larga escala entre os leitores de Aristóteles. O filósofo não dá a entender que é a favor da escravidão na Política. Ele diferencia a escravidão pela natureza e pela lei, sendo essa a do vencido na guerra, e aquela a do homem moralmente inferior, que não tem as virtudes do livre. Referindo-se às pessoas que só admitem a escravidão por natureza, diz: “É evidente que precisam admitir que existem homens que são servos em qualquer parte, enquanto outros não são escravos em parte alguma” (ARISTÓTELES, 2002, p. 20). Dirá ainda: “Existem escravos e homens livres pela própria ação da natureza” (ARISTÓTELES, 2002, p. 21). Podemos, sem receio de malversar o entendimento de Aristóteles, dizer que Epiteto, por exemplo, um dos sucessores do pensamento da Academia, filósofo estóico, foi um homem livre, apesar de escravo pela lei. Os “escravos por natureza” ainda podem ser úteis à sociedade em virtude de suas habilidades especiais, mas não são homens em quem a ordem verdadeira se manifestará e poderá através deles se refletir na ordem da sociedade. Essas forças da alma que prejudicam o alcance pelo homem da verdadeira ordem são tão humanas, essencialmente humanas, quanto o desejo de realização da ordem. Todo homem precisa carregar o fardo de suas paixões demasiadamente humanas. “Encontra-se neles (nos homens) um outro elemento naturalmente oposto ao princípio racional, lutando contra este e resistindo-lhe” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, livro 1, seção 13, em Os Pensadores, volume IV, 1973, p. 264). Em suma: a natureza humana não é de todo pessoal. Contém, isto sim, um campo poderoso de paixões e concupiscências que não apenas não são humanas como também prejudicam a formação e ação do centro pessoal na alma. Platão, professor de Aristóteles, trata bastante do tema quando fala das forças na alma, no seu diálogo Fedro, comparando o homem, numa alegoria de resto já famosa, a um carroceiro que precisa educar um de seus cavalos, o rebelde, para que a natureza dócil do outro possa se sobressair.[53] Outro filósofo, Mário Ferreira dos Santos, quando trata da relação entre três de suas leis eternas, a Oposição, a Reciprocidade e a Forma, nos dá uma lição, aplicável inclusive à esfera pessoal humana na realidade material, motivo pelo qual a transcrevo: “As oposições intrínsecas que, de certo modo, se opõem`à forma, ao logos de proporcionalidade intrínseca, que são as que corrompem uma unidade, estão virtualizadas, enquanto o grau de tensão é suficientemente forte para manter a unidade; contudo, é mister considerar que esta virtualização não é total, mas apenas parcial, pois há um atuar corruptivo que acompanha todo ciclo evolutivo, o qual não é suficiente para romper a força de coerência; quando, porém, consegue romper tensão, o processo corruptivo inicia-se obstaculizado, conseguindo ou não o rompimento total, segundo certas circunstâncias. De qualquer forma, há em todo ser finito, potências corruptivas   virtualizadas, cuja atualização pode ser apenas parcial, sem conseguir o rompimento total da tensão, mas suficiente para perturbar, de certo modo, a coerência do ser. Ademais, essas potências corruptivas podem atuar sem nunca conseguirem um total rompimento da tensão.” (SANTOS, A Sabedoria das Leis Eternas, 2001, p. 109)[54] Assim, o uso da força não é necessário para impor uma ordem verdadeira na pessoa humana, ela é necessária para impor uma ordem que tangencia os traços da personalidade humana sobre a natureza impessoal do homem. Em particular, o uso da força é necessário para quebrar a impessoalidade no homem quando ela tende a convulsionar a ordem da existência social humana.[55] O uso da força na imposição da ordem jurídica traz à lume a natureza impessoal da norma legal: a impessoalidade da ordem jurídica tem sua fonte ontológica na impessoalidade da natureza humana.

XXI Os Componentes de Validade.

A ordem jurídica não tem um status ontolóligo de per si. Enquanto é objeto de estudo sem relação com seu contexto, a validade de suas regras é apenas o significado de suas proposições. A construção aplicada a esse corpo de significados leva ao impasse do paradoxo zenônico. Com a introdução de fenômenos conexos, entretanto, a validade das regras adquire uma realidade. As regras legais, para início de análise, são proposições que tratam da ordem da existência humana em sociedade. O verdadeiro conteúdo de uma norma, todavia, nem sempre usa a fórmula normativa. O legislador dá por pressuposto o fenômeno contextual, qual seja, a interpretação pelos membros da sociedade a fim de dar à lei significado completo. O texto da lei poderia facilmente ser completado com os dizeres “Você deve” ou “Você nâo deve”. A estrutura de sentido aponta para além do texto em direção à realidade social em que a ordem jurídica adquire sua validade particular. A conduta dos membros da sociedade preenche o conteúdo da norma legal. Entretanto, a ordem jurídica não se refere à conduta humana com o objetivo de fazer valer uma proposição verdadeira sobre a conduta dos seres humanos. A norma legal não é uma proposição científica, nem o ser humano objeto de experimento por cientistas, muito embora seja possível com alguma margem de erro prever a conduta dos membros de uma sociedade com base no conhecimento de suas leis. A intenção da lei, portanto, não é cognitiva, a lei ambiciona uma verdade, qual seja, a verdade sobre a ordem da sociedade. Melhor do que a fórmula “Você deve” ou “Você não deve” é a fórmula “É verdade que você deveria fazer isso ou aquilo” para expressar com mais exatidão a linguagem normativa. A verdade da proposição específica pode ser submetida a uma análise crítica, porém qualquer norma legal, tanto quanto uma proposição sobre acontecimentos no mundo sensível, pretende expressar uma verdade, não obstante seja mais difícil aferir a verdade daquela do que a desta. O Dever é uma realidade na experiência jurídica. Se o objetivo da existência humana é realizar a sua natureza ao máximo possível dentro dos poderes humanos, então um determinado curso de ações será preferível a outro. O caráter normativo de uma ação contemplada pela regra não se refere à forma da regra, mas à ação em mira. Se o caráter normativo de fato se adequa ao tipo de ação é outra análise crítica a ser feita. Qualquer outra construção abandonaria a tensão ontológica do Dever e deixaria a questão da ordem à mercê da força apenas. A validade da regra legal, portanto, contém o componente de normatividade no sentido ontológico. Assim, lembra-nos Max Weber, a exclusão ou limitação da liberdade de contrato em assuntos familiares — a bigamia, por exemplo, é proibida –, “existentes na maioria dos direitos modernos, bem como a desaprovação da sujeição contratual à escravidão, estão condicionados por idéias e interesses predominantemente éticos ou políticos” (WEBER, 2004, p. 32), ou seja, a considerações de ordem ontológica. Em termos husserlianos, equivaleria a dizer que se A deve ser B, se “devemos obedecer às ordens do autor da Constituição”[56], por exemplo, então somos bons se obedecemos às ordens do autor da Constituição, ou seja, é bom que obedeçamos às ordens do autor da Constituição. A ciência jurídica positivista, enquanto ciência normativa, “estabelece proposições gerais em que, com referência a um padrão normativo, uma Idéia ou objetivo principal, mencionam-se certas características cuja posse garante conformidade àquele padrão, ou estabelece uma condição indispensável deste.” (HUSSERL, p. 25) A norma básica de uma disciplina é a definição do que deve ser considerado ‘bom’ nessa disciplina.[57] No parágrafo seguinte Husserl desbanca a pretensão de neutralidade da ciência normativa positivista: “We see from these analyses that each normative proposition presupposes a certain sort of valuation or approval through which the concept of a ‘good’ or ‘bad’ (a value or a disvalue) arises in connection with a certain class of objects: in conformity with this, objects divide into good and bad ones. To be able to pass the normative judgment: ‘A soldier should be brave’, I must have some conception of a ‘good’ soldier, and this concept cannot be founded on an arbitrary nominal definition, but on a general valuation, which permits us to value soldiers as good or bad according to these or those properties. Whether or not this valuation is in any sense ‘objectively valid’, whether we can draw any distinction between the subjectively and objectively ‘good’, does not enter into our determination of the sense of should-propositions. It is sufficient that something is held valuable, that an intention is effected having the content that something is valuable or not.” (HUSSERL, p. 35) Mas a regra contém mais do que essa normatividade ontológica. O ius positivum não é o ius divinum et naturale. Na validade da norma legal entra ainda o componente da existência impessoal do homem. O fator impessoal permeia o processo legislatório desde a criação de um representante até a imposição de decisões individuais em casos concretos. Esta autoridade de poder não é uma fonte adicional de normatividade[58], pois não há existência humana independente da ordem da sociedade. A ordem da existência humana é de modo indivisível a ordem da existência humana na sociedade. É necessário que haja, seja o que for a natureza humana, uma organização social com o poder de fazer e aplicar a lei, porque a sociedade é ontologicamente a maneira humana de existir.[59] O poder do representante e sua função legiferante não é uma fonte independente de normatividade, é uma fonte em separado da validade da regra legal, além da razão e da Revelação.

XXII    A Ordem Jurídica e a Sociedade Histórica Concreta.

Os resultados finais de nossa análise apontam que a ordem jurídica e sua validade têm raízes na natureza do homem e sua existência em sociedade, porém não obstante isso a ordem jurídica não pode ser deduzida da natureza humana. Entre a existência humana em sociedade e os esforços do representante de ordená-la através do processo legiferante, existe a sociedade historicamente concreta, a qual pode ser pequena, grande, nômade, baseada em agricultura, industrial, comercial. Pode ser uma comunidade tribal, uma cidade-estado, um estado-nação, um império. E pode além disso referir-se a um mito cosmológico, ou já haver diferenciado o conteúdo mitológico-racional da revelação. As questões sobre a ordem jurídica, portanto, estão longe de uma solução pacífica com a garantia de que os elementos pessoais e impessoais da natureza humana compõem sua validade. Existe a questão proeminente da ordem ótima dentro das condições históricas dadas e também a questão sobre a técnica legal para atinjir os melhores resultados. Já que o direito tem sua função na ordenação concreta de uma sociedade, não existe uma história do direito no sentido estrito.[60] A história do direito só existe enquanto subordinada a das sociedades. Para uma pesquisa sobre a natureza do direito, o acontecimento mais importante da história da ordem social é a diferenciação das fontes normativas de autoridade, a razão da revelação, nas experiências compactas e simbólicas do mito. Sob este aspecto, três tipos de direito podem ser distinguidos: o direito no contexto de uma sociedade que é ordenada por um mito cosmológico, o direito em sociedades que experimentaram uma Revelação (Israel, por exemplo[61][62]) ou a filosofia (os gregos antigos[63] e a Roma clássica); e o direito no contexto do império romano e da civilização ocidental, em que a razão e a revelação estão presentes como fontes autorizadas de ordem.[64] Dos diversos sentidos que a palavra Igreja tem, o menos importante é o que denomina a instituição visível.[65] O melhor é a comunidade dos fiéis na mensagem de Jesus de Nazaré, os quais eventualmente se reúnem em seu nome. “Sempre que se reunirem em meu nome, eu aí estarei presente.” É normal que as pessoas criem um local onde se reunirão em seu nome. Que esse local se torne uma instituição, porém, já tem um quê de fetiche.[66] Mas a instituição é mais que mero local de reunião, é onde os professores da religião, isto é, os sacerdotes, se formam, geração em geração. Como a Fundação de Progresso Espiritual no planeta vizinho.[67] Ruim é que a instituição seja louvada, em termos conceituais rigorosos[68], como procuradora de Deus na terra. Ela é criação dos homens, instrumento para a busca do ideal de beleza, bondade e verdade.[69] Desde que Lutero logrou que a Igreja parasse de disputar a primazia de visibilidade com o Estado, o cristianismo foi mais eficiente em conscientizá-lo moralmente. “O Estado não tem como receber um fluxo de poder ou influência de uma Igreja que é apenas um vizinho no espaço ao invés de um precursor no tempo.” “Lutero”, diz Rosenstock, “tornou a Igreja de um vizinho no espaço para um profeta no tempo”. Antes dele, John Wycliffe diria no prólogo de sua tradução da Bíblia para o inglês: “This Bible is for the Government of the People, by the People, and for the People.” [70][71] Outro exemplo da influência religiosa na construção política: não fosse a base moral cristã de Martin Luther King, o movimento norte-americano pelos direitos civis dos negros demoraria anos para obter o sucesso que obteve. Embora as autoridades da Revelação e da filosofia sejam negligenciadas na ciência do direito hoje, a relação das três autoridades – o poder político é a terceira[72] – é de capital importância para a realização da ordem verdadeira na sociedade. Essa questão assumiu relevância especial nos dois séculos passados em virtude do surgimento de movimentos gnóstico-revolucionários que pretendem ordenar a sociedade fundindo a autoridade normativa na autoridade de poder.[73] Esta fusão das autoridades teria que ser adicionada como um quarto tipo de direito, haja vista que a fusão deliberada não é o mesmo que o plano compacto inicial. A distinção dos grandes tipos de ordem na história, no contexto dos quais funcionou o processo legislatório, deve ser o último resultado da pesquisa sobre a natureza do direito.

XXIII       Conclusão

Vimos ao longo desse trabalho a contribuição de Voegelin para a teoria do direito. Resumimos seu livro “The Nature of Law”, e construímos digressões e comentários, bem como comparamos sua teoria com de outros autores, para melhor explicá-la e aproximá-la da doutrina brasileira. Vimos que o direito não pode ser compreendido como um conjunto de normas jurídicas, pois essa compreensão cairia dentro do paradoxo zenônico, onde o cachorro corre atrás do próprio rabo (Gödel daria um piparote no nariz de Kelsen). O sistema kelseniano baseia-se na filosofia matemática de Kant, matemática num sentido lato, isto é, um sistema formal deduzido de axiomas, os quais não podem ser provados[171]. Ao contrário da geometria euclidiana, no entanto, cujos axiomas parecem bem razoáveis, probabilíssimos, a filosofia de Kant funda-se em suposições que de plano a invalidam, como a incognoscibilidade da coisa-em-si. Sua filosofia todinha cai como um jogo de dominó se perguntarmos qual sua coisa-em-si. Se é incognoscível, por que sequer debruçar-se sobre ela?[172] Kant escreve, por exemplo: “Nada podemos ajuizar acerca das intuições de outros seres pensantes, nem saber se elas estão dependentes das condições que limitam a nossa intuição e são para nós universalmente validas.” (Crítica da razão pura, A27, primeira edição, B43, segunda) Rigorosamente, isso significa que a comunicação humana é improbabilíssima, pois dependeria do acaso de as condições de intuição dos seres pensantes serem as mesmas. E invalida a própria revelação da filosofia do autor a outros seres pensantes. Uma criança não poderia acreditar nisso. Kant parece mesclar um grande talento lógico com uma percepção de realidade fragilíssima. Tempo é o registro da mudança sucessiva. Kant diz que o tempo é uma condição subjetiva de nossa intuição, mas, fosse assim, enquanto não estou intuindo uma coisa, ela não poderia mudar. Por exemplo: se fiquei um tempo sem ver uma pessoa, não posso achar, ao reencontrá-la, que engordou, porque enquanto não a intuía, ela teria que permanecer exatamente igual à ultima vez em que a intuí. Etc, etc. Igualmente com o espaço: espaço é o registro da localização. Enquanto não intuísse uma coisa, ela teria, necessariamente, que permanecer no último lugar em que a vi, se o espaço é uma condição subjetiva de nossa intuição. Enquanto não a estivesse percebendo, uma vaca não poderia andar. Berkeley foi mais filósofo que Kant porque disse que tudo se resumia a uma percepção (ou intuição), mas essa percepção era a de Deus, em quem todas as coisas se movem. O mundo, sob esse aspecto, independe de nós, porque depende, essencialmente, não de nós, mas do Ômi. Se as condições de intuição são subjetivas, se as coisas-em-si não se nos mostram, não enquanto tais, Kant não pode dizer que “conhecemos somente o nosso modo de os perceber (os objetos), modo que nos é peculiar, mas pode muito bem não ser necessariamente o de todos os seres, embora seja o de todos os homens.” (Crítica da razão pura, A42, primeira edição, B59, segunda) O mundo de Kant não é um lugar de encontro, matriz de intuições variadas[173], ele não é um. Existem tantos mundos quantos são os seres que percebem, um mundo para cada ser perceptor, cada qual com sua intuição subjetivíssima de fenômenos sem fundamento na coisa-em-si. Não posso comparar essa teoria senão com um mundo de alucinações individuais. Nós podemos achar que outros seres humanos são iguais a nós porque emitem sinais indicando que são iguais a nós. Conversam conosco, dizem bom dia, amam, talvez, almoçam, e interpretam reflexivamente aquilo que inteligiram (em maior ou menor grau, sendo que no segundo caso aproximam-se de um nível animalesco de vida). Kant é um homem para mim, embora ache que ele interprete mal o que vivencia. Mas ele não pode dizer categoricamente que eu sou um homem. Porque outros seres humanos, como tudo o mais, são fenômenos de uma intuição subjetiva sem fundamento real. O mundo kantiano é como a Matrix inventada pelas máquinas (no filme Matrix, de 1999). Com a exceção de que não se tem como descobrir a sacanagem perpetrada pelas máquinas e ver o mundo real. A coisa-em-si está para todo o sempre separada de nós. A situação de Kant melhora quando diz que os objetos não se dão pelas formas subjetivas de nosso modo de intuição, o modo é que é dependente do objeto, “e, por conseguinte, só possível na medida em que a capacidade de representação do sujeito é afetada por esse objeto.” (Crítica da razão pura, B72, segunda edição) Um pouco de lucidez em meio a delírios subjetivistas, então o mundo impacta realmente nosso modo de intuí-lo. A norma fundamental de Kelsen (devemos obedecer à Constituição[174]), a partir da qual erige seu sistema, parece razoável. E sempre será num regime governado por pessoas nem boas nem más. Num regime governado por pessoas iníquas, porém, será uma camisa-de-força contra uma mobilização política desejável. O direito deve ser entendido dentro do esforço da sociedade de contruir a sua ordem. Só assim a norma jurídica é entendida com a força do mandamento ontológico que inegavelmente tem. O teste definitivo é saber se o movimento político dominante (ou a alternância de partidos políticos dominantes) promove, embora imperfeitamente, o bem comum.

Livro II

 

XXIV A Diferenciação do Mito em Filosofia

“(…) a alma ainda está inextricavelmente entrelaçada com o tecido da ordem social e cósmica; quando a ordem se torna injusta, a alma tem de se tornar também injusta, pois a vida não tem sentido a não ser como a vida no interior da ordem. Estritamente falando, a alma ainda não existe. A resistência autoconsciente de Xenófanes ou de um Heráclito estavam fora de questão. Passaram-se vários séculos antes que alma estivesse suficientemente formada a ponto de se tornar uma fonte de ordem em oposição à     sociedade, como ocorre na vida e obra de Platão. Embora a alma comece a “vir a ser” – se podemos empregar a expressão do poeta –, o ser primário ainda é a ordem da realidade social e cósmica da qual o homem não é senão uma parte subordinada. (VOEGELIN, 2009, p. 230) “Early philosophical efforts translated the insights of the dissolving mythology into terms that go beyond the image, or at least reduce its distracting presence. Abstraction, logic, and mathematical philosophy would ultimately emerge from this difficult and epochal transition from concrete to abstract diction.” (MCEVILLEY, 2002, p. 28.) No Ocidente, Tales de Mileto é apontado como o primeiro a ter realizado esta operação. “Thales,” as modern scholars have said, “earned the title of the first Greek philosopher manly because of his abandonment of mythological formulations.” The discourse has gone beyond the storytelling ascription of personality and the use of a complex of images involved in a narrative sequence; it is a move toward abstract terminology and assertions bleached of image, freed from the inherited image-stream.” (MCEVILLEY, 2002, p. 29) Mito é uma história alegórica cujo propósito é dar um quadro de referência a um fenômeno nebulosamente experienciado. Quando o mito do bom selvagem surgiu, algo de um sentimento de mal-estar pela correria da vida urbana e o gosto de vida arcádica há, mesmo gosto que Jacinto (personagem de Eça de Queiroz em A cidade e as serras) sentiu ao mudar-se de Paris para a vilazinha portuguesa, de onde não quis mais sair, mesmo gosto que sentimos ao visitarmos o sítio de vovó no interior. Em evento sobre Vinícius de Moraes, Bruno Tolentino disse que o cheiro de merda no campo é bom, na cidade não, mas no campo, merda de vaca, é bom.[74] O mito de Rousseau (entre outros) dá um quadro de referência à experiência da vida tranquila e sensitiva do campo. Mas eu posso apreciar uma vida idílica no campo e nem por isso achar que o homem primitivo é bom. Considerada a evolução espiritual de então, ele é tão bom quanto qualquer homem de hoje ou do futuro. Peço licença para repetir uma citação do L. U.: “Os intelectos parciais, incompletos e em evolução estariam desamparados no universo-mestre, seriam incapazes de formar o primeiro modelo de pensamento racional, não fosse pela capacidade inata de toda mente, mais elevada ou mais baixa, de formar um quadro do universo dentro do qual pensar. Se a mente não pode estabelecer conclusões, se não pode penetrar as verdadeiras origens, então essa mente irá, infalivelmente, postular conclusões e inventar origens para que possa ter um meio de pensar logicamente dentro da moldura desses postulados criados pela mente. E, conquanto essas molduras do universo para o pensamento da criatura sejam indispensáveis à operação intelectual racional, elas são, sem exceção, errôneas, num grau maior ou menor. Os quadros conceituais para o universo são apenas relativamente verdadeiros; eles são um andaime útil que deve finalmente ceder o seu lugar diante das expansões de uma compreensão cósmica ampliada.” (LIVRO DE URÂNTIA, 2007, doc. 115, p. 1260) O mito encerra uma verdade relativa. Ele deriva de uma experiência genuína, mas o quadro de referência que cria para colocar em evidência essa experiência é mais (ou menos) arbitrário. Por isso os mitos podem ser aperfeiçoados, de modo que dêem um quadro mais exato da realidade. O mito grego da criação do mundo diz que do CAOS primordial diferenciou-se Géia, a qual “gerou a Urano (Céu), que a cobriu e deu nascimento aos deuses”. (BRANDÃO, 1986, p. 185) “Ó Sólon, Sólon, vós, Gregos, sois todos umas crianças; não há um grego que seja velho”. Ouvindo tais palavras, Sólon indagou: “O que queres dizer com isso?” “Quanto à alma, sois todos novos – disse ele.” (PLATÃO, 2011, p. 83) Platão, então, relata-lhes o mito pelo qual um demiurgo bom gerou nosso mundo, um ser dotado de inteligência, com a forma esférica – a mais perfeita, segundo Platão –, de modo a conter em si todas as formas possíveis. A partir do mundo o demiurgo extraiu os seres que o habitariam. Platão não experienciava nebulosamente a distinção entre aparência e realidade quando criou o mito da caverna. Mas quem o lesse poderia encontrar uma expressão para sentimentos longamente experimentados e indefinidos. “Thus the first peoples, who were the children of human race, founded first the world of arts; then the philosophers, who came a long time afterwards, and so may be regarded as the old men of the nations, founded the world of the sciences, thereby making humanity complete. This history of human ideas is strikingly confirmed by the history of philosophy itself. For the first kind of crude philosophy used by men was autopsia or the evidence of senses. It was later made use of by Epicurus, for he, as a philosopher of the senses, was satisfied with the mere exhibition of things to the evidence of the senses. And the senses of the first poetic nations were extremely lively, as we have seen in our accounts of the origins of poetry. Then came Aesop, or the moral philosophers whom we would call vulgar. (As we have noted above, Aesop preceded the seven sages of Greece.) Aesop taught by example and, since he lived in what was still the poetic age, he took his examples from fictitious similitudes. (The good Menenius Agrippa used one such to reduce the rebellious Roman plebs to obedience.) An example of this sort, or better still a true one, is even now more persuasive to the ignorant crowd than the most impeccable reasoning from maxims. After Aesop came Socrates, who introduced dialectic, employing induction of several certain things related to the doubtful thing in question. (VICO, 1948, p. 174) Na infância da república americana, George Washington foi pintado como um herói curioso, incapaz de mentir,  entre outras coisas. Um livro preferido de Abraham Lincoln era “The Life of George Washington, With Curious Anecdotes, Equally Honorable To Himself and Exemplary To His Young Countrymen”, com histórias fantástica sobre o founding father. Hoje, passada a infância americana, Washington é biografado com rigor histórico, o que não precisa, necessariamente, diminuir a afeição que se tem por ele. A filosofia não mata o mito, ela pode até exaltá-lo (“O filósofo é também amante do mito, pois o mito consiste em coisas admiráveis”, disse Aristóteles). O filósofo Platão quis expulsar poetas de sua cidade ideal, mas ao mesmo tempo com freqüência citava como autoridade Homero e era, ele próprio, um criador por excelência de mitos. Como se explica isso? A pinimba de Platão é antes uma acusação contra os imitadores baratos, macaqueadores, do que contra os poetas em geral. Queria ele a imitação poética da virtude, não do vício, a qual devia ser banida. Machado de Assis e Nelson Rodrigues (esse, então, nem se fala), dois escritores com uma acuidade psicológica de primeiríssima qualidade, que se dedicaram antes a analisar o vício do que a virtude, se contorcem agora; teriam que se desdobrar para conseguir seu lugar na República. Machado poderia dizer em seu favor o que, como censor do Conservatório Dramático Brasileiro, escreveu em favor da peça As leoas pobres, citando seu próprio autor, Émile Augier: “Thérèse: Mas existem certas feridas sociais que seria mais sábio esconder. Pommeau: Para que a gangrena se instale nelas? De jeito nenhum! Podemos expô-las à luz do dia, mas encostando nelas o ferro em brasa. A verdadeira finalidade da comédia não é a de encorajar o vício escondendo o seu segredo, mas o de enfraquecê-lo desmascarando-o.”[75] Mas Platão sugeriu também, motivo pelo qual é acusado de autoritarismo, que as obras poéticas devam passar por uma censura antes de serem lidas para as crianças e jovens. “Pois a criança não pode discernir o alegórico do literal, e as opiniões que acolhe nesta idade tornam-se, comumente, indeléveis e inabaláveis.” (PLATÃO, livro II) Bom, muita coisa ruim que chegou à minha mente quando jovem eu fui depurar com a filosofia, de Platão, por exemplo. Difícil de aceitar, Platão, é que se apaguem das obras poéticas passagens consideradas viciosas ou mentirosas, como as em que Homero relata disputas entre os deuses. Um professor pode muito bem selecionar as passagens virtuosas de uma obra literária que quer que seu aluno leia, afastando as viciosas, assim como um pai proíbe seu filho menor de assistir à novela das nove (deveria proibir a das sete também!). Pode também usá-la, o professor, numa turma mais madura[76], como ensejo para uma discussão sobre a natureza da Deidade. Será mesmo, perguntará socraticamente o professor, que: ““Dois tonéis se encontram à soleira de Zeus, Um cheio de sortes felizes, e outro, infelizes,” E aquele ao qual Zeus concede de ambas “Ora experimenta do mal, ora do bem;”” (PLATÃO, 1965, p. 140) Será mesmo que Deus trata assim aos homens? Ou será que quer o seu bem? Mas, se os ama e é bom, por que não impede o sofrimento humano? Etc., etc. Não é necessário expurgar do texto essas passagens.[77] Mudando um pouco de assunto, é curioso observar que Justiniano I, o imperador bizantino que mandou compilar o Corpus Iuris Civilis, é o mesmo a quem se imputa ter fechado a Academia neoplatônica[78], expulsando filósofos pagãos do império, os quais buscaram refúgio no império persa sassânida. Um dos movimentos considerados marcantes das translationes studiorum[79] teve ocasião justamente então. Na Pérsia, a breve estadia dos filósofos neo-platônicos deu impulso para que a escola de Jundi-Shapur fosse fundada.[80] De volta ao império bizantino, Simplício se instala na cidade de Harran, “onde uma escola neoplatônica autêntica e importante sobreviveria ao menos até o século décimo” (BECHTLE, 2000, tradução minha). Em 532, três anos após a decisão pelo exílio, Justiniano firma acordo de paz com o Império persa, em que consta uma cláusula garantindo aos filósofos “que esses homens, ao retornarem a seus países, deverão viver sem medo e livremente pelo resto de suas vidas, sem serem forçados a acreditarem no que quer que vá de encontro a suas visões ou a mudar as crenças de seus ancentrais.” (BECHTLE, 2000, tradução minha) Talvez se lembrando das lições de Marco Aurélio, seu antecessor na direção do império, Justiniano tenha voltado atrás. Tratando da arqueologia do eu, Ken Wilber, esse tesouro americano, nos dá uma análise da passagem da fase mítica para a lógica na ascensão interior até o Espírito: “This early mental self is at first a simple name self, then a rudimentary self-concept, but it soon expands into a full-fledged role self (or persona) with the emergence of the rule/role mind and the increasing capacity to take the role of other (F-4). The worldview of both late-F3 and early F-4 is mythic, which means that these early roles are often those found displayed in the mythological gods and goddesses, which represent the archetypal roles available to individuals. That is, these are simply some of the collective, concrete roles available to men and women – roles such as a strong father, a caring mother, a warrior, a trickster, the anima, animus, and so forth, which are often embodied in the concrete figures of the world’s mythologies (Persephone, Demeter, Zeus, Apollo, Venus, Indra, etc.). (…) These mythic roles are simply part of the many (sub)personalities that can exist at this preformal mythic level of consciousness development; they are preformal and collective, not postformal and transpersonal. A few “high archetypes”,   such as the Wise Old Man, the Crone, and the mandala, are sometimes symbols of the transpersonal domains, but do not necessarily carry direct experience of those domains. (…) With the emergence of formal-reflexive capacities, the self can plunge yet deeper, moving from conventional/conformist roles and a mythic-membership self (the persona), to a postconventional, global, worldcentric self – namely, the mature ego (…). As vision-logic begins to emerge, postconventional awareness deepens into fully universal, existential concerns: life and death, authenticity, full bodymind integration, self-actualization, global awareness, holistic embrace (…). In the archeological journey to the Self, the personal realm’s exclusive reign is coming to an end, starting to be peeled off a radiant Spirit, and that universal radiance begins increasingly to shine through, rendering the self more and more transparent.” (WILBER, 2000, pp. 104-105) Wilber continuará a descrição da trajetória do eu desde a diferenciação do corpo ante a matéria circundante até a transformação da alma no Espírito; para nossos propósitos, porém, a análise precedente bastará se restar claro que o domínio mental não é o último da escalada de desenvolvimento humano. Como dissemos supra (cap. XV), o esforço grego de diferenciação do mito na filosofia não foi bem sucedido socialmente; parece-nos que o domínio mítico da existência humana sempre será mais poderoso que o filosófico do ponto de vista social – algo que o próprio Platão percebeu, uma vez que inventava mitos para a explicação de etéreas realidades filosóficas.[81] Socialmente, a filosofia pode ter influência marcante apenas se aceita participar de uma proposta religiosa de salvação que perpassa e passeia pelos diferentes níveis do desenvolvimento humano. Como lembra Marco Pallis, o mito não se deixa aprisionar por dogmas e doutrinas, facilitando a comunicação de verdades que de outro modo poderiam ser debilitadas pelo escrutínio estéril de especialistas.[82] Ou, como diz Píndaro, “a fábula e suas ficções enegenhosas têm sempre tido mais apelo sobre o coração dos pobres humanos que a linguagem simples da verdade, e a poesia, que a tudo embeleza, soube emprestar aos fatos mais incríveis a aparência da realidade.” (PINDARE, I, tradução minha) Não concordamos, porém, com Pallis quando afirma que a história mítica “era necessariamente tida como “verdadeira””. Certamente os gregos tinham dúvidas sobre a veracidade histórica de seus mitos, muito embora, como diremos a seguir, tirassem-lhes grande proveito moral-espiritual. Assistindo à história de Hamlet, a rainha Elizabeth a cria verdadeira, e não precisava se perguntar se ela tinha acontecido de fato ou não. Bastava-lhe a verdade da própria história, ou seja, o impacto imaginativo que ela causa. Tampouco a peça, como outras obras literárias, é tratada hoje como mero “entretenimento”. Não perdemos de todo a noção de que a literatura forma o imaginário moral de um homem. Vale-nos aqui Mário Ferreira dos Santos: “Essas ficções não têm correspondência enquanto tais, em sua forma, a realidades históricas, mas a diversas realidades históricas (D. Quixote tem um pouco de cada homem e de todos os homens, mais deste do que daquele, etc). (SANTOS, Noologia geral, p. 219) Em seguida ele diz: “Podemos compreender portanto esquemas que correspondem a uma combinação do real-ficcional com o real-histórico, o que nos permitiria, então, considerá-los gradativamente.” (SANTOS, Noologia geral p. 218) Ao contar um fato, o narrador, por definição, o torna uma história e introduz o elemento ficcional-imaginativo. Porque para ser aceito como fato, o evento, chamemo-lo assim, precisa antes ser aceito como possível. E para ser aceito como possível, precisa corresponder, sob aspectos variados, a eventos reais passados já devidamente imaginados, ou a eventos potencias imagináveis, através dos quais se o reconhece. A peça Hamlet consegue impactar o espectador porque ele enxerga a possibilidade de que um príncipe queira retomar o trono de seu tio usurpador e que, confuso, ele hesite em fazê-lo.[83] Ele fica impactado porque reconhece esse modo de agir, ou melhor, a potencialidade desse modo de agir na natureza do homem, de um e outro homem em particular. O ouvinte da história terá que fazer uma regressão imaginativa e pinçar de sua experiência os eventos que a história suscita, fazendo uso da função fantástica da mente (phantasia), como Aristóteles a entendia.[84] Em resumo, portanto: ao ser discursado, o real ganha necessariamente contornos ficcionais.[85] Por isso, aliás, jovens precisam de estruturas imaginativas com as quais compreenderão que determinados eventos e atitudes acontecem. Não o fazendo, tenderão a ver como pedras inermes, ou melhor, a passar batidos por situações vivas e complexas, as quais são como se não existissem, porque não conseguem reconhecê-las. Mas se não se esforçarem por desenvolver o aparato imaginativo pelo qual podem reconhecê-las, essas situações vivas e complexas, porventura pessoalmente importantes, serão uma fonte de desgaste psicológico, uma vez que o ego não achará seguro sua emergência à consciência e reprimi-las-á. Neuroses coletivas de um povo existem. Basta o fingimento de que uma situação política relevante não esteja acontecendo seguido de sua gradual redundância em esquecimento. Neurose é o resultado do processo de falsificação de uma situação desconfortável (se não fosse desconfortável não se teria fingido que ela não existia) na qual se acredita ainda.[86] Que seu grau de percepção de determinados fenômenos esteja afinado ou em queda um filósofo percebe logo, no jovem, entretanto, ele está à espera de ser ativado: é a ótima sensação que um primeiro contato com o maravilhoso da filosofia e da poesia causa. O espanto e a admiração deveriam ser o impulso inicial da atividade filosófica, não a paralisia em que Sócrates, assim lhe reclamava Mênon, deixava esse com suas aporias. Cremos que o mito serve para evocar e incentivar sentimentos no homem. Uma vez, porém, que esse sentimento já é parte de sua experiência viva, o mito deixa de ter o apelo de lembrá-lo ao homem. Nesse momento, o homem pode querer saber em que consiste aquele sentimento: “Quid est…?” Surge, então, a filosofia. A definição mesma do sentimento pode ainda revelar outras possibilidades que não se percebia antes no mito, desacreditando-o, portanto, em alguma medida pelo menos. Além de sua função coletiva — todo mundo já foi criança e deles precisou –, o mito pode, entretanto, continuar a municiar a imaginação com possibilidades de compreensão. Os gregos não davam muita bola para seus deuses, mas não recusavam as histórias morais que os mitos encerravam. Se a filosofia é uma técnica, não o é menos o amor. “O amor é o desejo de fazer bem aos outros”, diz o Livro de Urântia. Mas o amante não pára no desejo, ele pratica seu amor. O caminho de amar ao próximo pode muito bem ser ajudado pela técnica de como fazê-lo. E quem melhor que Jesus, o ser humano mais amoroso que houve, para nos ensinar como amar o próximo? Que é o bem? Bem é a participação na perfeição divina. Daí que Jesus exorte: “Sede perfeitos como vosso Pai é perfeito.” A bondade nasce do relacionamento da criatura com o Pai, e resulta numa apreciação progressiva de valores e sua unificação com a experiência vivida no dia-a-dia. Ela se relaciona às vivências e escolhas pessoais de aceitar com sabedoria a luz do Pai. Porque uma pessoa busca a bondade – o bem refere-se à unidade suprema, lembram-se de Platão? – ela discerne progressivamente a verdade e a beleza, e então só lhe falta unificar esses elementos num ideal de serviço divino. “Quem faz o bem a um desses pequeninos, a mim o faz.” Rosenstock dirá que o “bem não “é”, exceto por propagação. Não está em nenhum homem, mas se origina apenas entre professor e aluno, entre pai e filho,” entre o Pai maiúsculo e seus filhos, completo. “Exatamente como as crianças são procriadas, os dons do espírito, a fertilidade da bondade, o contágio do entusiasmo, a fecundidade do pensamento (…),” são “processos que emergem para a vida entre pessoas.” (ROSENSTOCK-HUESSY, 2001, p. 26) Jesus era bastante amado por seus apóstolos e seguidores, em geral. O amor também tem a característica de facilitar o amor, como disse Tomás Melendo. Jesus era assertivo e até ríspido se preciso, mas sempre deixava o outro escolher. Em momento algum de seu julgamento, seja ante o sinédrio ou perante Pilatos, ele fez uso de sua oratória para persuadí-los de que cometiam um erro, mas esteve pronto, sempre, a falar a algum de seus acusadores que desejasse sinceramente saber como proceder. Pilatos quase chegou a escutar Jesus, mas, covarde, vacilou nas horas decisivas. Jesus podia chamar a Pedro de Satanás, ou de hipócritas a certos fariseus, ou seja, ele não era delicado quando sê-lo implicasse fraqueza. Nunca hesitou em ser severo com os homens, quando a ocasião demandava tal disciplina.[87] Era firme na devoção de fazer a vontade do Pai. Como saber a vontade do Pai, para fazê-la? Vai aqui minha experiência pessoal. Guie-se pelo Ajustador do Pensamento, mas nunca ao preço de criar ansiedade para si. Ele não fala com você — não como um colega seu fala — mas lhe mostra, a cada momento, o que é possível fazer. Atualização de 12/06/2014: Importa notar que se perguntar qual é sua vontade já é realizar sua vontade. Além de bom, Jesus procurava ser gracioso, doce e amável. “A bondade torna-se  eficaz apenas quando é atraente.” (LIVRO DE URÂNTIA, doc. 171, 7, p. 1874) Ele procurava ser compassivo, mas sem participar de uma autocomiseração, a qual pode trazer inação. Jesus procurava construir junto com o outro. Costumava pedir ajuda ao outro como forma de ajudá-lo, acionando o seu altruísmo. “Esse mesmo Deus que declara não ter necessidade de nos dizer se tem fome, não tem pudores de mendicar um pouco de água à samaritana. Ele tinha sede… “Mas ao dizer “dê-me de beber” era o amor da pobre criatura que o Criador do universo reclamava.” (Lisieux, Oeuvres completes, pp. 220-221, tradução minha) Dissemos acima que Jesus não seria polido em qualquer ocasião. Mas ele era delicado o bastante para deixar o próximo à vontade, sem manifestar curiosidade para saber de sua vida; menos ainda constrangê-lo ou coagi-lo-ia de alguma maneira. Jesus respeitava o coração dos homens: se desejassem algo, ele já o teria percebido antes que precisassem dizê-lo, se não quisessem servir ao bem, pouco importaria alardear querê-lo aos quatro ventos. Jesus conhecia o coração dos homens e respeitava seus desejos, bons ou ruins. Era sua escolha de realizar ou não a vontade do Pai. Jesus fazia o bem “enquanto passava”, sem emprestar muita cerimônia ao que fazia ou dizia de bom, como algo corriqueiro junto às atividades diárias. Ele sabia do que o próximo precisava antes mesmo que o dissesse, porque enxergava sua experiência de vida através de seus próprios olhos. “O maior amor que existe é dar a vida por seus amigos”, Jesus disse e chegou a realizá-lo, por amor a seus inimigos inclusive.[88] Mais importante que descrever o amor é vivenciá-lo[89], assim como para o médico é mais importante curar seu paciente do que se ver às voltas com rótulos diagnósticos.[90] Ame ao próximo como Jesus te amou, leitor.

XXV A Lei Mosaica

Continuando sob o influxo das considerações bíblicas feitas no capítulo anterior, deseja-se agora discriminar entre os Dez Mandamentos de Moisés as regras morais e as jurídicas. Bem entendido, todos os mandamentos guardam um valor moral, ou seja, eles apontam para um dever. Porém alguns não chegam a apontar um dever jurídico, ou seja, um dever que consista numa ação no mundo dos fatos que o homem deve realizar para guardar a justiça face a outro ou outros homens, segundo o sistema de normas da sociedade a que pertence. Esses deveres limitam-se a uma relação entre o homem e o Senhor, não se plasmando numa conduta que poderia ser igualmente considerada sob o aspecto da relação sistêmica humana. O mais evidente desse tipo de mandamento é o primeiro, o que, na versão de Jesus, manda Amar a Deus sobre todas as coisas. Ora, no plano dos fatos, muito embora se possa até ver os efeitos desse amor, dificilmente se poderá descobrir que uma pessoa não tem amor por Deus devido a ausência de ações que pareceriam significá-lo. Lembremos aqui da peça de Shakespeare, Rei Lear, onde Cordélia, faltando-lhe as palavras, não faz um discurso de homenagem a seu pai a que fora instada, o que é entendido pelo rei como falta de devoção da filha. Na realidade, ao contrário das duas irmãs, que souberam falar muito bem em favor do pai, e lograram dividir sua herança, Cordélia, afastada do espólio, era a única que lhe tinha verdadeiro amor.[91] Esta tensão entre a vontade e sua conseqüência no plano dos fatos não é nova para os criminalistas. Eles procuram sempre revelar a vontade criminosa, o dolo na prática do crime, através de ações fáticas que a caracterizam, inclusive como uma garantia para o acusado de que nenhum homem presumirá saber o que passa pela sua cabeça sem que o plano dos fatos o ateste. Entretanto, pelo exemplo do parágrafo anterior, vimos que a vontade nem sempre é acompanhada pelas ações que pareceriam significá-la. Hamlet esquivou-se das sugestões melífluas do tio Cláudio mediante uma crise nervosa.[92] Claro que esse era um expediente com efeitos positivos de curto prazo. A própria hesitação de Hamlet para matar seu tio (quando ele rezava[93]) revela que entubou neuroticamente tensões que precisava articular para poder fazer o que precisava fazer. No médio prazo, só os ares marinhos que lhe levariam à Inglaterra valeram-lhe a serenidade e prontidão para agir. A loucura pode nos desinibir contra a falta de sinceridade (perante nós mesmos, em primeiro lugar, quiçá, frente ao mundo). Ela nos dialetiza numa conversa com nosso alter-ego espiritual (sim, se você fala sozinho, você não apenas espera falar com Deus um dia[94], você realmente está falando com Ele). Ela persegue às origens e procura integrar os conflitos que acionaram nosso mecanismo de defesa. “Eu brinco com o desespero dele, mas é para curá-lo.” (Edgar, sobre Gloucester, em Rei Lear) Há uma certa sabedoria em ser louco. Shakespeare trabalhou esse tema como ninguém.[95] Os mandamentos não foram outorgados apenas com vistas à organização de Israel, são também normas voltadas ao guiamento espiritual do indivíduo, com benefício a toda a nação. E, enquanto tais, só poderão se tornar jurídicas pela produção posterior, pormenorizada, de aspectos específicos da conduta do homem israelense. Que a lei mosaica se tornasse esterilizada a ponto de fariseus condenarem Jesus por curar no sábado é um desses erros que a humanidade comete ao fetichizar sua ordem. “De hecho, los valores son universales del sentido que han cristalizado en el transcurso de la historia de la humanidad. Se trata, en general, de valores como “no robarás”. Pero pueden darse situaciones en las que lo único razonable sea robar.” (FRANKL, 2000, pp. 37-38) Claro, é aquela situação explorada folgadamente pelo cinema americano: o policial requisita o carro de um pacato cidadão. A tal ponto se entende que essa é uma situação legítima que o ordenamento jurídico prevê que o policial pode fazer isso. Não só o policial, um nadador experiente deveria ajudar o banhista em apuros valendo-se, se preciso, de uma prancha largada na areia que não é sua. Roubar (furtar, utilizando a linguagem técnica) para comer não é considerado um erro. No fiel maduro a diferença entre certo e errado dissolve-se na vontade positiva de “ser perfeito como o Pai é perfeito.” O apóstolo Paulo mandava “experimentar de tudo e ficar com que é bom”. Agarrar-se a uma noção pré-definida de certo e errado tem seu valor, mas não dá conta das situações dicotômicas em que a experiência da vida nos vai lançando, suas oposições e contradições que a agitação do mundo e a bigorna da necessidade nos apresentam. “Pai, dá-nos o teu caráter”, seja a situação que for, é a ética do fiel maduro.

 

XXVI Profecia e Ação Histórica

Investigaremos agora como os filósofos, mormente os judaicos, dissertaram sobre a profecia. Ao leitor sem grande apreço por classificações, avesso a um espírito alexandrino, recomenda-se-lhe pular para o parágrafo que começa por Maimônides discute as opiniões sobre profecia de quem acredita em Deus. Há, segundo ele, pessoas ignorantes que crêem que Deus escolhe qualquer pessoa a seu alvedrio para receber o espírito da profecia, não importando se a pessoa é sábia ou ignorante, desde que seja boa. Os filósofos, a sua vez, dirão que a “profecia é uma certa faculdade do homem num estado de perfeição, o qual só pode ser obtido através do estudo.”[96] A visão que se extrai das Escrituras, e na qual ele acredita, a seu turno, coincide com a dos filósofos exceto pelo fato de que, segundo essa teoria, mesmo que alguém tenha capacidade para profetizar, e houver se preparado para tal, pode ocorrer de a profecia não lhe visitar. Maimônides faz uma exegese bíblica e diz que, à parte o caso de Moisés, cujas profecias seriam de uma outra ordem: “There are four different ways in which Scripture relates the fact that a divine communication was made to the prophet. (1) The prophet relates that he heard the words of an angel in a dream or vision; (2) He reports the words of an angel without mentioning that they were perceived in a dream or vision, assuming that it is well known that prophecy can only originate in one of the two ways, “In a vision I will make myself known unto him, in a dream I will speak unto him”(Num. Xii. 6). (3) The prophet does not mention the angel at all; he says that God spoke to him, but he states that he received the message in a dream or vision. (4) He introduces his prophecy by stating that God spoke to him, or told him to do a certain thing, or speak certain words, but he does not explain that he received the message in a dream or vision, because he assumes that it is well known, and has been established as a principle that no prophecy or revelation originates otherwise than in a dream or vision, and through an angel.” (Maimonides, parte 2, capítulo XLI) Ele revela ainda graus em que a profecia pode se dar. O primeiro consiste na assistência divina para que a pessoa encoraje-se a realizar algo bom e justo, quando então se diz que o “espírito do Senhor” influencia essa pessoa. O segundo ocorre quando “algo lhe chega”, como se a pessoa recebesse um poder que a encoraja a falar e discursar, e assim desenvolver a ciência, ou compor hinos ou tratar de questões políticas e teológicas. Dir-se-á que ela fala pelo Espírito Santo. Segundo a classificação do filósofo, outra não poderia ser a origem do cântico do grego Hesíodo. “Assim falaram as filhas legítimas do grande Zeus, e por cetro me ofereceram o bastão da Sabedoria, para que eu glorificasse as coisas futuras e as passadas, enquanto me ordenavam celebrar a estirpe dos deuses eternos e, em primeiro lugar, a elas mesmas, tanto no começo como no fim dos meus cantos.” (HESÍODO, 2009, p. 26) Ou: “É pelas Musas e pelo arqueiro Apolo que há sobre a terra cantores e citaristas como, por intermédio de Zeus, há reis.[97] É feliz aqueles que as Musas amam, pois dos lábios dele fluem cantos suaves.”[98] (HESÍODO, 2009, pp. 29-30) Exemplos incontáveis há de poetas que apelam à ajuda das Musas. Não deverá o fato significar algo? Sócrates, conforme nos conta Platão na Apologia que lhe dedica, dirá que “os poetas compunham por uma inclinação natural e por uma inspiração do mesmo tipo que têm os profetas e as profetizas de oráculos.” (LOURENÇO, 2008) Já que falamos de poetas, faça-se uma pausa para dedicarmos-lhes umas linhas. Sim, o artesão celeste vem à ajuda do artista inspirado. “Há três fontes possíveis de habilidade especial humana. Na base, existe sempre a aptidão inerente ou natural. A habilidade especial nunca é um dom arbitrário dos Deuses; há sempre uma fundação ancestral para todo o talento que se sobressai. Além dessa habilidade natural, ou antes, em suplemento a ela, pode haver a contribuição dos guiamentos do Ajustador do Pensamento, naqueles indivíduos cujos Ajustadores residentes tenham passado por experiências reais e autênticas, no mesmo domínio, em outros mundos e com outras criaturas mortais. Nesses casos, em que tanto a mente humana quanto o Ajustador residente são excepcionalmente hábeis, os artesãos do espírito podem ser delegados para atuar como harmonizadores desses talentos e também para dar assistência a tais mortais e inspirá-los na procura de ideais cada vez mais perfeccionados e intentar criar ilustrações elevadas para a edificação do reino.” (LIVRO DE URÂNTIA, doc. 44, cap. 08, p. 507) Dorival Caymmi, mestre da música popular brasileira, canta em Sargaço mar: “Doida canção / que não fui eu que fiz”. Maimônides identifica ainda uma terceira classe quando o profeta introduz seu discurso com a seguinte frase: “E a palavra de Deus veio até mim”, seria o caso em que o profeta viu uma alegoria em sonho, cuja interpretação lhe é dada dentro do próprio sonho.[99] Maimônides dirá que “a maior parte das profecias é dada por meio de imagens, por ser esta a característica da faculdade imaginativa, o órgão da profecia.” Dirá também que é preciso descontar certos exageros que ocorrem nas Escrituras, não se devendo entender literalmente o que foi usado em sentido figurado.[100] Dirá, por fim, “ser óbvio que tudo que é produzido deve ter uma causa imediata que a produziu”, “os profetas às vezes omitem causas intermediárias, e responsabilizam a produção de algo diretamente a Deus, dizendo que Deus o fez.”[101] Maimônides dá a entender que ao menos nem toda a profecia seria uma revelação direta de Deus, em verdade seria uma revelação de seres intermediários entre o homem e Deus. E nisso está certíssimo: “Muitas das mensagens de personalidades subordinadas, tais como os Portadores da Vida e várias ordens de anjos, têm sido apresentadas, nos vossos registros, como sendo provenientes do próprio Deus. O pensamento religioso de Urântia ainda confunde as personalidades coligadas da Deidade, da Trindade, com o próprio Pai Universal, de maneira a dar a todos um mesmo nome.” (LIVRO DE URÂNTIA, 2007, doc. 4, p. 60) De qualquer modo, vale a observação de Filo de Alexandria, para quem o profeta nada fala sobre o que lhe concerne.[102][103] Maimônides define a profecia, então, como uma emanação do Ser divino através do Intelecto Ativo, num primeiro momento para a faculdade racional do homem e, em seguida, para sua faculdade imaginativa.[104] O que é o Intelecto Ativo? É a faculdade da mente que despoja o ente concreto do que lhe impede penetrar em seu campo de inteligibilidade.[105][106] No caso de uma profecia, o Intelecto Ativo trabalharia, suponho, sobre as imagens de realidades espirituais que o profeta vê. A revelação diária com que nosso Ajustador do Pensamento nos contempla, entretanto, não se dá por meio de visões espirituais, mas pela correlação das realidades terrenas com as superiores e pelo reconhecimento dos níveis científico, moral e espiritual da vivência, os quais o homem deve aprender a harmonizar; ambos de maneira gradual. A revelação se dá muitas vezes de maneira supraconsciente, só aos poucos o intelecto a vai tornando (e ela se vai fazendo) consciente. Drummond falou de poemas que aguardam ser escritos, mas esses versos caberiam bem para explicar a revelação pessoal: “Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio.” O que significa dizer que o Ajustador atua de maneira supraconsciente? Significa que ele não atua de maneira consciente, ou seja, você não sabe que ele está agindo, ou melhor, você não sente que ele está agindo. Você sabe que ele está agindo porque permitiu que isso acontecesse (o Ajustador não age sem sua vontade), mas você mal percebe quando ele está ajustando seu pensamento. Para que ele o faça, é preciso que ganhe sua permissão, sua parceria, então, em primeiro lugar, você precisa saber que ele existe (ainda que sem o nome de Ajustador). Ele precisa dar notícia de si, conversar contigo, e, para ganhar sua confiança, precisa mostrar-se confiável, um guia confiável; deve propor um projeto bom (amável), porque ninguém segue algo ruim, salvo no intuito de autodestruir-se. Desde Freud sabe-se que os sonhos encerram um desejo do adormecido.[107] Que o digam o cão Baleia, a sonhar com preás gordas e enormes, ou o menino, com os cavalinhos de Platiplanto, nas histórias de Graciliano Ramos e J. J. Veiga, respectivamente. O Livro de Urântia não afasta a possibilidade de comunicação espiritual através do sonho, mas adverte que, em geral, trata-se de um fenômeno puramente fisiológico e psicológico, e que é preferível errar julgando uma comunicação divina como uma experiência puramente humana a exaltar como divina a experiência puramente humana.[108] Os filósofos judaicos trabalharam mais a idéia de profecia do que os cristãos, como era de se esperar, porque para eles a profecia é o centro criador de toda a sua religião, enquanto para os cristãos, uma vez que mal ou bem acreditam nos ensinamentos de um Filho de Deus que viveu como um humano, a profecia tem lugar secundário. Não obstante, o Doutor comum da Igreja Católica Romana tratou especificamente do tema na sua obra maior, posto inacabada. Diz ele que a profecia consiste num conhecimento, para o qual é requisito seja intenção da mente do profeta elevar-se à percepção dos assuntos divinos. “A inspiração é requisito para a profecia, no tocante à elevação da mente (…)”, “enquanto a revelação é necessária, no tocante à própria percepção dos assuntos divinos, quando então a profecia se completa.” (AQUINO, Secunda secundae, questão 171, artigo primeiro) Desenvolvendo a questão profética, Tomás dirá que “a luz profética chegará à mente do profeta como se fosse uma paixão ou impressão transitória” (AQUINO, Secunda secundae, questão 171, artigo segundo), ou seja, a iluminação profética não é permanente, porém depende da ação divina, seu princípio. Maimônides diria que o “profeta não profetiza continuamente, mas num momento é inspirado e no outro não”.[109] A tradição islâmica aponta que Maomé recebeu uma visita do arcanjo Gabriel, o qual lhe mandou recitar versos do que ficou conhecido como o Corão. Avicena diz que os anjos assumem uma forma visível para o profeta, o qual passa a ouvir sua voz.[110] O próprio Maomé tentou descrever como essas revelaçãos lhe aconteciam: “… quando indagado sobre como a Revelação lhe chegava, o Profeta mencionou duas maneiras: “Algumas vezes me chegou como as reverberações de um sino, e essa me é a mais penosa; as reverberações amainam quando tomo conhecimento de sua mensagem. E algumas vezes o Anjo assume a forma de um homem e fala comigo, e tomo conhecimento do que ele diz.” (LINGS, 2006, p. 46, tradução minha) O Livro de Urântia diz que a “verdadeira visão profética é um pressentimento suprapsicológico”. (LIVRO DE URÂNTIA, 2007, doc. 91, p. 1000) Voegelin diferencia nos seguintes termos o influxo de ordem da profecia e da filosofia: “A palavra, o dabar, revela imediata e plenamente a ordem espiritual da existência, assim como sua origem no ser transcendente-divino, mas deixa que o profeta descubra a imutabilidade e a recalcitrância da estrutura mundano-imanente do ser; o amor do filósofo pela sabedoria vagarosamente dissolve a compacidade da ordem cósmica até que tenha se tornado a ordem do ser mundano-imanente além da qual é percebida, porém nunca revelada, a medida transcendente invisível.” (VOEGELIN, 2009, p. 125) Terá o leitor entendido na primeira leitura o significado das palavras de Voegelin, que nos custou algumas? Ele diz que o profeta é inspirado nas verdades do plano espiritual, mas não pode revelá-las, sem adaptação, às outras pessoas. Justamente porque elas não são profetas como ele. Precisam ser ensinadas de maneira que possam compreendê-las e aceitá-las, o que depende de sua sabedoria quando as apresenta. O filósofo, a sua vez, extrai as verdades do mito cosmológico de modo a expandir a responsabilidade do homem por suas atitudes. Mas ele o faz sem afastar o plano espiritual. Ao contrário, na medida mesma em que o homem se torna mais responsável, mais se enfatiza sua necessidade de um bom relacionamento com o espírito, de onde provém toda a bondade. Voegelin diferencia um de outro pelo sentido com que ambos percorrem a escada de Jacó. O profeta desce trazendo e adaptando ao plano finito a ordem do infinito, o filósofo também procura harmonizar os planos espiritual e material, mas ele, na visão de Voegelin, sobe os degraus da escada, espremendo das analogias míticas o sumo espiritual. O profeta, parece-nos, atualiza planos histórico-espirituais de supremacia divina no nível finito da existência. O filósofo procura acessar a realidade completa que o profeta contribui por atualizar. Como vimos, o profeta tem que se adaptar à recalcitrância da estrutura mundano-imanente do ser, ele não pode simplesmente revelar tudo o que sabe sem considerar o que a sociedade está preparada para ouvir e aceitar.[111] Um dos erros da rebelião de Caligástia foi esse: a falta de paciência para esperar que os homens aos poucos se tornassem aptos a entender e praticar tudo o que ele e seu grupo podiam lhes ensinar. É o erro das revoluções políticas em geral. Schelling diz com toda propriedade[112] que a religião mitológica não se opõe à religião revelada, antes elas se completam, isto é, como o homem é um ser evolucionário, a revelação deve ser apreendida evolucionariamente.[113] Moisés é chamado de incomparável, no Livro de Urântia, entre outros motivos porque foi capaz de apresentar o seu alto conceito de Deidade da maneira que os escravos beduínos poderiam compreender, o que não deixava de incomodá-lo, por sinal. Moisés fez um esforço heróico para elevar Yavé à dignidade de uma Deidade suprema, quando o apresentou como o “Deus da verdade e sem iniqüidade, justo e reto em todos os seus caminhos”. Entretanto, apesar desse ensinamento elevado, o entendimento limitado dos seus seguidores fez com que fosse necessário falar de Deus como sendo uma imagem do homem, como estando sujeito a ataques de cólera, de ira e severidade, e que fosse até mesmo vingativo e facilmente influenciável pela conduta do homem. (…) No entanto, foi realmente uma pena observar a grande mente de Moisés tentando adaptar o seu conceito sublime de El Elyon, o Altíssimo, para que a compreensão dos ignorantes e iletrados hebreus o alcançasse. Aos seus líderes reunidos, ele dizia, com a sua voz tonitruante: “o Senhor vosso Deus é o único Deus; não há outro além dele”; enquanto que, à multidão misturada, ele declarava: “Quem é como o vosso Deus, entre todos os deuses?” Moisés voltou-se contra os fetiches e a idolatria, fazendo uma brava frente contra eles e conseguiu um sucesso parcial, declarando: “Vós não vistes nenhuma figura no dia em que o vosso Deus vos falou em Horeb, do meio do fogo”. Ele também proibiu que se fizessem imagens de qualquer espécie. (Livro de Urântia, 2007, doc. 96, pp. 1057-1058)[114][115] O profeta tampouco é um adivinhador, como o vidente; ele está mais para um criador do futuro, ou melhor, para uma voz criadora do futuro[116], uma vez que não fala por si. Moisés, Zoroastro e Maomé foram homens que praticaram ações históricas duradouras. É só a banalidade do mundo de hoje que pode conceber os profetas como meros vaticinadores das coisas futuras. O termo mesmo “profeta” vem do grego prophero, que significa “fazer”, “produzir”, “determinar”. O profeta é uma força agente, não um observador. Ele determina o curso dos eventos, ele gira o botão do acontecer histórico, imprimindo-lhe uma direção totalmente nova, gerando efeitos de escala incomparavelmente superior ao das forças causais até então agentes. Ele determina uma súbita elevação do nível do devir histórico, onde repentinamente uma profusão de forças dispersas, caóticas e inconciliáveis se unifica numa nova direção da vida humana, dando um sentido ao caos e iluminando a uma nova luz a meta permanente da existência.” (CARVALHO, 1998, p.124) Claro que Olavo exagerou ao dizer que o profeta imprime uma direção totalmente nova ao acontecer histórico; isto pode ser verdade de alguns profetas, mormente Maomé e Moisés, mas não dos judaicos pós-Moisés, os quais trabalham uma evolução nítida do conceito de Deidade, desde o irado Yavé — assim Moisés precisou revelá-lo –, até o Pai amoroso dos dois Isaías, mas sem chegar a influenciar decisivamente a história política da nação israelense. A ação de seres celestiais na história espírito-civilizacional da humanidade não se restringe, obviamente, à ação profética. Além de Michael de Nébadon, Deus de nosso universo, que encarnou em nosso planeta como Jesus de Nazaré para proclamar o evangelho da filiação ao Pai Universal[117], houve também o esquecido Príncipe Planetário Caligástia[118] e seu corpo de cem assessores; Adão e Eva, que falharam em sua missão[119], mas, rebaixados a simples mortais, lograram se reabilitar; Melquisedeque, o mestre espiritual de Abraão na cidade de Salém, a futura Jerusalém; bem como quem me contou tudo isso, o Livro de Urântia, de que sempre vos falo e novamente incito a ler. Quem o não lê é mulherzinha do padre. O famoso século VI antes de Cristo não teve grandes mestres espirituais por acaso.[120] Foi uma ação deliberada de Melquisedeque, que via, um milênio e meio depois de sua outorga, seus ensinamentos ameaçados de corrupção. “Pareceu, por um tempo, que a sua missão como precursor de Michael poderia estar em perigo de falhar. E, no sexto século antes de Cristo, por intermédio de uma coordenação excepcional de agentes espirituais, dos quais nem todos são compreendidos mesmo pelos  supervisores planetários, Urântia presenciou uma apresentação muito inusitada de verdades religiosas sob formas múltiplas.” (LIVRO DE URÂNTIA, doc. 94, 6, pag. 1033) “É verdade que Deus tenha posto muitas vezes a mão de Pai, em intervenções providenciais na corrente dos assuntos humanos.” (LIVRO DE URÂNTIA, doc. 97, 8. p. 1071) Não há que exagerar essa intervenção, entretanto. A Bíblia não é a palavra de Deus. A história do povo de Israel está atrelada à intervenção profética, é verdade, mas muito do que passou como acontecimentos sobrenaturais não era senão ocorrências decisivamente humanas. Por exemplo, Davi jamais foi ungido rei pelo profeta Samuel. Uma colega me perguntou uma vez se o Livro de Urântia não poderia ter sido escrito por seres humanos muitíssimo criativos. Eu ainda creio que não, acho que é impossível que seres humanos o tenham escrito. Ainda que houvesse homens muito criativos, seria preciso um coordenador, uma vez que o livro tem uma coerência inter partes que a Bíblia não possui. A unidade do Velho Testamento depende da unidade da história do povo de Israel. Depende da noção de pertencimento ao projeto de Moisés, que é o de um povo que escapou do cativeiro egípcio e poderia carregar a tocha profética para a humanidade. Mas essa unidade, a cada momento histórico, a cada novo profeta que surgisse, teria que ser rearticulada, segundo a revisão, não exatamente do projeto mosaico, mas da noção que se tinha de Deus, por um lado (assim, o Deus irado de Moisés dará lugar progressivamente a um Pai amoroso), por outro, do porquê o povo passava por determinadas situações, por exemplo, o cativeiro na Babilônia. Isso se dava porque o povo tinha se afastado do Senhor e Ele agora lhe queria dar uma lição, porque o Senhor queria dar uma provação ao povo, ou simplesmente porque se tratava de uma contingência histórica alheia ao compromisso, à aliança com Yahweh, e, enquanto contingência, passaria, porque Yahweh não os deixaria na mão. Essa unidade o narrador bíblico precisava rearticular. O Velho Testamento é uma compilação de livros sapienciais e históricos cuja unidade foi concedida em parte externamente por seu compilador (da mesma maneira que um livro com os dez melhores contos policiais do século teria, salvo pelo gênero literário dos contos, uma unidade concedida ex post facto), em parte internamente pela noção dos seus escritores de que registravam a história de seu povo (e por isso deveriam saber o que aconteceu antes) em sua relação com Deus (razão pela qual, através dos profetas, poderiam ousar projetar o que viria a acontecer). O Velho Testamento se assemelha, num plano microcósmico, à unidade da parte 3 do Livro de Urântia, que conta a história da evolução biológica e de percepção de realidade da raça humana no planeta Terra. A unidade do Livro de Urântia, a seu turno, é dada ex ante. Isto é, os escritores de cada uma das partes do livro sabiam que elas pertenciam de antemão a um todo. Por isso, as referências de um documento a outro são constantes. Não apenas seres celestiais a serviço do Pai Universal agem historicamente. Quem senão o diabo mesmo armou para que Eva caísse em tentação? “(…) Foram urdidos os planos para que a mãe da raça violeta caísse na cilada.” (LIVRO DE URÂNTIA, doc. 75, 2, p. 840) Mas não atribuamos ao diabo males que nós mesmos fazemos. Ele “tem sido relativamente impotente desde a cruz de Cristo.”[121] (LIVRO DE URÂNTIA, doc. 53, 8, p. 610) Contra a sua influência sempre serviu de escudo a fé, com a qual nenhum espírito maligno jamais pode. O Supremo é a factualização de Deus no tempo, sua experiencialização junto às criaturas. A realização de potencialidades que a todo tempo se é chamado a atualizar significa a contribuição, ao modo de cada um, para a evolução do Deus finito, o Supremo.[122] Nós podemos ajudar, portanto, Deus a se realizar no tempo. Se fugirmos da empreitada, outra pessoa realizará, à sua maneira, as possibilidades que terão continuado latentes em dado momento.[123] A concepção que o homem tem de Deus é mais próxima de uma realidade efetiva quanto mais ela tende ao Supremo, como bem o sabia Santo Anselmo.[124] Além disso, ela girará em torno de analogias vãs. “Pode ser que, nos limites superiores do finito, onde o tempo se une ao tempo transcendido, haja alguma espécie de obscuridade e mistura de seqüência. Pode ser que o Supremo seja capaz de prever a sua presença no universo, nesses níveis supratemporais e que, então, em um grau limitado, antecipe a evolução futura, refletindo essa previsão futura de volta aos níveis criados, como Imanência do Incompleto Projetado. Esses fenômenos podem ser observados onde quer que o finito faça contato com o suprafinito,   tal como as experiências dos seres humanos resididos pelos Ajustadores do Pensamento podem ser verdadeiras predições das futuras realizações do homem no universo, em toda a eternidade.” (LIVRO DE URÂNTIA, doc. 117, 7, p. 1291) Além da ação histórica de agentes celestes, são precisamente as “forças sociais intermediárias que enquadram, protegem e controlam a vida do homem” (JOUVENEL, p. 376) que podem transformar as estruturas políticas ou espirituais. “A história do mundo,” dirá Hegel, “não começa com qualquer objetivo consciente, como acontece com determinados círculos dos homens.” (HEGEL, 2004, p.69) Ação histórica, definamo-la de uma vez, é a mudança deliberada e duradoura de um estado de coisas. É difícil achar livros sérios sobre sociedades secretas. Uma sociedade secreta pode ser um agente histórico, mas não creio que a maçonaria tenha, a par dos salões literários franceses onde se desenvolveu a atmosfera racionalista, arquitetado a Revolução Francesa[125][126] ou a Independência americana. Que George Washington e Benjamin Franklin eram maçons, não é segredo algum, mas isso não significa que a instituição tenha gestado o movimento[127][128], o qual surge antes como reação ao assédio da metrópole britânica contra as treze colônias do que de um plano acalentado independente das circunstâncias de momento que se valeu delas. Registre-se, porém, que a influência maçônica no selo do país, no próprio papel-moeda americano e na arquitetura da capital Washington é nítida. Eduardo Callaey considera, ao revés, que “a revolução francesa não só foi a ruína da antiga maçonaria como também seu verdugo”. (CALLAEY, 2007, p. 206) Mas nem ele, cujo livro se intitula “O mito da revolução maçônica”, afasta categoricamente a possibilidade de que os Illuminati tenham infiltrado a maçonaria: “(…) La francmasonería francesa había virado hacia estructuras más democráticas que facilitarían la influencia bávara en sus cuadros. Este período democrático prerrevolucionario no dejó de constituir el ámbito ideal para que las ideas subversivas provenientes de las huestes de Weishaupt se enquistaran en las logias francesas. Las reformas introducidas por el Gran Oriente crearon condiciones adecuadas para que las políticas de infiltración de los Iluminados de Baviera pudieran ejecutarse con mayor velocidad. Todo parece indicar que los iluminados utilizaron a la francmasonería como instrumento de poder, pues en la orden bávara de Weishaupt encontramos el caso paradigmático de sociedad secreta que planifica meticulosamente el control de poder.”][129] (CALLAEY, 2007, p. 212) As constantes referências da maçonaria à ordem dos templários, reclamados como um modelo (quando não como pais históricos) dão azo a uma desconfiança mútua entre maçons e Igreja Católica (ou, na melhor das hipóteses, a um desconforto). Esse problema não existe nos EUA, nação eminentemente protestante, na Escócia ou Inglaterra, mas na França (não obstante a reforma martinezista do rito escocês decidida no convento de Wilhelmsbad) é uma fonte de tensão. A unidade maçônica é simbólica, mal se lhe discerne uma unidade de ação, o que fica claro, aliás, no processo de independência brasileira: os grupos de Gonçalves Ledo e José Bonifácio, embora concorressem ambos para a causa independentista, digladiam dentro da maçonaria, o primeiro por um liberalismo exaltado, o segundo por um moderado, a tal ponto que o sábio e irascível patriarca funda sua própria sociedade secreta, o Apostolado. [Atualização de 10/07/2014: Na realidade, o Apostolado foi fundado antes do Grande Oriente Brasílico. José Castellani corrige: O interessante é que alguns autores maçons, inadvertidamente, costumam afirmar que José Bonifácio, despeitado com a influência do grupo liberal de Ledo no Grande Oriente, teria fundado outra entidade, o “Apostolado”, para ela levando todo o seu grupo, além de D. Pedro. A afirmativa é totalmente incorreta, pois o Apostolado da Nobre Ordem dos Cavaleiros da Santa Cruz — baseada na Carbonária européia — foi instalada no dia 2 de junho de 1822, quinze dias antes da fundação do Grande Oriente e dela fazia parte o próprio Ledo, assim como vários de seus seguidores. (CASTELLANI, p.32)]. A par dos estudos científico-esotéricos, a maçonaria parece mais o palco em que outras sociedades secretas com objetivos político-históricos definidos disputam a primazia, um microcosmo do estado, por cujo poder os partidos políticos lutam. A sociedade secreta foi, conta-nos o Livro de Urântia no documento 70, capítulo 6, a incubadora de partidos políticos, igrejas, clubes e serviços secretos, que atuaram de maneira mais evidente como agentes históricos.

XXVII   Sociologia das Castas

Segundo a tipologia clássica, embora não ocidental, das quatro castas, toda sociedade tem quatro castas, conceito que se diferencia do de classes econômicas, pelo qual referimo-nos apenas ao poder aquisitivo de um grupo; as castas, a sua vez, designam os tipos preponderantes de ações vocacionadas das pessoas. Não necessariamente essas pessoas formarão um grupo coeso real[130]; a distinção por castas serve antes a uma compreensão das vocações vingadas que na sociedade se acham. Em linhas gerais, os brâmanes são os sacerdotes, xátrias são os guerreiros e governantes, defensores físicos da ordem, militares e políticos, em suma. Vaishas são os empresários e os shudras, trabalhadores braçais. Claro que uma única pessoa pode reunir as virtudes das quatro castas. Porque é um guerreiro, uma pessoa não precisa deixar de ter uma vida espiritual arguta. Salta logo a memória a personalidade de Inácio de Loyola. Ou a seguinte passagem do Livro de Urântia: Naquela noite, Gonod escutou a narrativa dessas experiências e disse a Jesus, com   bonomia: “Eu proponho fazer do meu filho um homem de conhecimento ou um homem  de negócios, e agora tu começas a fazer dele um filósofo ou um filantropo”. E Jesus     sorridente respondeu: “Talvez nós façamos dele todos os quatro; e então ele poderá desfrutar de uma satisfação quadruplicada na vida, pois o seu ouvido para o reconhecimento da melodia humana será capaz de reconhecer quatro tons em vez de um”. E então Gonod disse: “Percebo que tu és realmente um filósofo. Tu deves escrever um livro para as gerações futuras”. E Jesus replicou: “Não um livro — a minha missão é viver uma vida nesta geração e para todas as gerações. Eu…”. Mas parou, dizendo a Ganid: “Meu filho, é hora de recolhermo-nos”. (LIVRO DE URÂNTIA, 2007, p.   1465) A cristalização dos grupos sociais que se operou na Índia, embora indicasse com mais segurança o lugar de cada um na sociedade, também prejudicou a inicativa e desenvolvimento pessoais, bem como diminuiu a cooperação dos grupos. De fato, no texto ‘Uma Resposta a Mahatma’, o senhor Ambedkar diz que “a estabilidade (social) é desejável, mas não a custo da mudança quando ela é imperativa.” (AMBEDKAR, VIII) Ele diz que o sistema hereditário de castas indiano ofende dois cânones do ajustamente social, quais sejam, a fluidez e a equidade. Um brâmane oficiar rituais, “sem fé, ou crença, apenas como um processo mecânico passado de pai para filho, não é conservação da virtude.” (AMBEDKAR, VII) Será preciso continuar a dissertação chegando a falar nos chandalas, os intocáveis? Não é preciso. O sistema indiano de castas é odioso. Embora seu estudo nos interesse, concentrar-nos-emos agora em como sua tipologia pode ajudar na compreensão de uma sociedade. Os homens precisam de um apelo espiritual, de uma participação na ordem do ser (para usar uma linguagem voegeliana), função que as pessoas mais espiritualizadas desempenharão. Não apenas os líderes religiosos, mas poetas, filósofos e até políticos, vide Sólon, podem realizá-lo. É o louvável trabalho dos brâmanes. Quando, entretanto, a experiência espiritual cede lugar ao cumprimento estrito de regras doutrinárias, a religião terá sido encampada pela teologia e a função brâmane cairá de nível. Nada impede que a sociedade, seja por sua própria evolução, ou com a ajudinha dos céus que é a revelação, reencete sua trajetória ascendente na relação com o Pai Universal.[131] Num sentido ampliado e mais rasteiro[132], a casta brâmane identifica qualquer grupo capaz de moldar as crenças, terminologias, idéias e sentimentos de um povo. “As multidões imitam o exemplo dos mestres, sem pensarem se é bom ou mau.” (1989, BHAGAVAD GITA, III, 21) Nesse sentido, artistas do show business em geral podem ter mais influência do que arcebispos católicos, por exemplo. Também os chamados formadores de opinião; cientistas; astrólogos; colunistas de jornal; professores universitários; autores de telenovelas e psicólogos – por que não? – se incluiriam aqui.[133] Alguns são os vulgarizadores dos julgamentos intelectuais feitos pelo primeiro escalão da casta brâmane. Os xátrias são os governantes, os empunhadores da espada em favor da ordem política. Eles atuam tanto na preservação da ordem interna, quanto na sua defesa (ou quiçá ataque) de inimigos. Sua função, portanto é dupla: por um lado administram e julgam, por outro guerreiam. Hoje, pelo menos, há uma divisão de trabalho nítida entre as duas funções, as quais, não obstante, continuam unidas na figura do Presidente da República, que é ao mesmo tempo o administrador máximo, embora não absoluto, da ordem, e o comandante-em-chefe das Forças Armadas.[134] Às vezes um brâmane pode pegar em armas para defender sua mensagem. O Guru Hargobind, quinto em sucessão ao fundador do Siquismo, Guru Nanak, entendeu por bem militarizar a religião como defesa às investidas do imperador mogol-islâmico do Punjabe, que assassinaram o quinto Guru, também seu pai, Arjun. Ele fez questão de utilizar duas espadas quando elevado à condição de Guru, uma, que os outros Gurus também usaram, para simbolizar o poder espiritual, e a segunda, novidade sua, para simbolizar o poder temporal-militar. Tanto Zoroastro quanto Maomé foram guerreiros também. A função de produção econômica, de geração de riquezas, abertura de negócios e empregos é desempenhada pelos vaishas. Embora se pense com alguma freqüência que, uma vez definidos pelos xátrias os padrões de suas atividades, o empresariado toque seus negócios alheio aos processos políticos, a realidade é que existe lobby empresarial junto a políticos, seja por empréstimos de bancos estatais, por preferência de obras públicas numa determinada região ou setor, novos parâmetros jurídicos, etc.[135] Os shudras são os trabalhadores que não conseguem acumular riqueza que lhes possibite tornarem-se empresários. Sua influência é mínima, servem no máximo como massa de manobra de líderes sindicais, que, enquanto tais, deixaram de ser shudras. Os profissionais liberais localizam-se entre os shudras e os vaishas. São a nossa classe média, o grupo mais influenciável pela casta brâmane. Dele saem muitos candidatos a brâmanes, como o autor deste texto. Pode ser que no desenvolvimento evolutivo de nossa era urantiana, a classe dos sacerdotes deixe de existir. Nesse caso, e não obstante, a tipologia das quatro castas continua a servir para explicar uma sociedade, porque, ademais do referencial inicial, ortodoxo, que são os sacerdotes, a casta brâmane, como explicado acima, pode identificar qualquer grupo que processe a mitologia poético-política de uma sociedade.

XXVIII Que é Política?

Política é a arte de se fazer obedecer em nome do bem comum. Essa obediência, por definição, tem o poder de valer-se pela força embora possa ser livremente aceita. Que é o bem comum? É o bem que deriva da cooperação inteligente de um grupo de pessoas. O político pode ou não praticar, deveras, o bem comum. O demagogo agirá como Lima Barreto procurou descrever as discussões para criação de um novo estado da Federação no romance Numa e a Ninfa. “A massa, a população interessava-se pelo debate, pesava argumentos, sem suspeitar que tanto esforço de inteligência escondesse uma vulgar mascateação ou um arranjo de políticos.” (BARRETO, p. 2) A sua vez, o ideólogo encobre num vestimento de idéias um esquema de poder, segundo a definição de Karl Marx. Aprende-se muito sobre política lendo Lenin, por exemplo. E aqui mora um perigo. Lenin era um homem iníquo, isto é, fez da desobediência deliberada ao Pai uma razão de vida.[136] Mentes revolucionárias em geral, talvez porque sua única ambição na vida seja a transformação política, entendem do ofício. Que um grupo de pessoas aceite, repita e dissemine associações de idéias, cacoetes e reflexos mentais, toda uma maneira de pensar sobre fatos político-sociais que um núcleo de brâmanes concebeu, é essencial para vitórias políticas. Importa que essa maneira de pensar seja adotada por descontentes, em primeiro lugar, depois que se condense em chavões e símbolos[137] usados por uma militância, e então se torne senso comum.[138] A militância não é necessariamente feita por quem não entende o curso das ações políticas. O militante pode saber diferenciar muito bem os níveis do discurso retórico, próprios da militância e da política mesma, dos níveis de discursos dialético-científico, poético e lógico, e trabalhar com ambos. Se o discurso político, além de dar vazão e direção a inconformidades dispersas — “Give me something worth fighting for!”, os homens parecem exclamar –, tem substância a ponto de despertar a vontade de sentido do homem, tanto mais eficaz ele será. Marx não era tolo o bastante para crer que o proletariado, que mal estudava, prepararia uma revolução. Seria no máximo uma bucha de canhão. Nenhuma revolução comunista, aliás, teve participação decisiva de operários. E Marx, que não era operário, “os via com desprezo”. (JOHNSON, 1990, p. 73) Luís Inácio Lula da Sila, que nunca foi de estudar, e só aprendeu a falar um pouco melhor no exercício da própria Presidência da República, não preparou revolução alguma, foi antes seu símbolo e principal beneficiário.[139] Se há uma batalha política a ser travada, é a que se dá entre as crenças mitológico-científicas de cunho evolucionário, como as de Cícero, John Adams e José Bonifácio, e as ideológico-revolucionárias de um Robespierre, Hitler ou Aleksandr Dugin. Cumpre aqui desenvolver a distinção entre os termos evolução e revolução, que desgostava Rosenstock. Se o “ato criativo que libera novas potencialidades da humanidade é chamado de revolução” (ROSENSTOCK, 1993, p. 467), então nada há de errado com a revolução. O próprio Livro de Urântia usa aqui e ali o adjetivo revolucionário como algo próximo de bom. Das revoluções que Rosenstock discutiu em sua impressionante obra “Out of revolution”, porém, a luterana e a americana, e talvez a britânica, sequer são uma revolução para pensadores como Olavo de Carvalho. De fato, elas não pretenderam uma transformação total do homem, não substituíram a moral humano-divina por um futuro prometido como a fonte de autoridade para o julgamento de seus atos presentes e como paradigma de interpretação da história. Poder-se-ia dizer que a era de luz e vida de que fala o Livro de Urântia, que é o sentido da história humana, a chegada da longa luta evolucionária de mundos como Urântia, pode compartilhar com a revolução a característica de paradigma para interpretar o passado. Pode ser, acontece que a era de luz e vida é uma revelação, não um futuro que saiu da cabeça do próprio homem. Lembremos, porém, que Caligástia, a quem alcunhamos de diabo, adotou uma estratégia revolucionária para implementar avanços cultural-raciais. Deu no que deu.[140] Nem a revelação está livre da tentação revolucionária. Moisés, já o dissemos, foi sábio o bastante para ensinar apenas aquilo que seus ouvintes seriam capazes de compreender. A evolução, em contraposição a esse tipo de revolução, equivale à sabedoria do “tempo de nascer, tempo de morrer, tempo de plantar, e tempo de colher”, de que “tudo tem um tempo para cada coisa debaixo do céu”, face aos impulsos, muito humanos, de querer fazer tudo de uma vez só, e — aí sim mora o pecado — ao orgulho da própria mente de encontro à estrutura da realidade. O bom político, continuemos nossas definições, é o que se faz obedecer porque pratica, deveras, o bem comum. Poder político é a possibilidade concreta de ação que garante todas as outras possibilidades concretas de ação. Garantir significa garantir uma ação enquanto se manifesta exteriormente. Não faz sentido falar em garantia – ou em coação – a uma ação – por exemplo, rezar em silêncio – que não chega a se exteriorizar de maneira cabal. É por essa razão mesma que a perseguição religiosa terá sempre uma eficácia limitada, porque “a cidadela do espírito”, contra todas as investidas, “permanece inexpugnável”.[141]

XXIX Que é o direito?

Dito tudo isto, falta fazer a pergunta: Que é o direito? O direito é um conjunto de possibilidades concretas de ação ou inação estipuladas ou implícitas em normas, garantidas pelo poder político e experienciadas num determinado grupo humano organizado em cooperação inteligente, como parte integrante dessa organização. Se um pai castiga seu filho porque ele deixou de agir conforme o orientara, possui a possibilidade concreta de castigar o filho e vale-se de sua força e autoridade para fazê-lo. Mas não o poderia se a polícia, resguardada na lei, o impedisse. Salvo às escondidas, não estaria garantido.[142] O pátrio poder é um direito porque o ordenamento jurídico o reconhece, porque o poder político o garante. Pensemos num clã da antiguidade não inserido numa comunidade maior (a tribo). Neste clã, a vontade do patriarca será a lei. O uso último da força[143] a ele compete. Aqui, o pátrio poder é o poder político. Há grupos sociais intermediários numa nação que produzem sua própria normatividade, reconhecida ou não pelo direito nacional, pelo poder político. Num grupo terrorista uma norma que mandasse matar membro que delatasse atividades para forças nacionais de segurança, que, portanto, estipulasse essa possibilidade de ação, quase seria jurídica. Mas, como o líder do grupo não tem poder político, faltar-lhe-ia a garantia que esse poder dispensa. Num clube de bairro, a expulsão (prevista em norma interna) de membro que deixe de pagar três meses de mensalidade é, por sua vez, possibilidade concreta de ação jurídica, porque o direito nacional tranquilamente a abrigaria. O fato das normas se dirigirem a um grupo humano específico é o que (para afastar o fantasma de Zenão de Eléia) dá ao conjunto uma permanência para além da renovação dos componentes. Pois o direito não tem uma forma como eu, Daniel, tenho, isto é, as células que formavam meu corpo quando nasci já foram todas trocadas, mesmo assim, uma vez que estão ordenadas dentro do organismo, dentro da minha forma, não se pode dizer que eu sou outro do que quando nasci. Sou eu mesmo, mudado em algum grau. Mas no caso do direito, sua forma é muito menos clara. Seus componentes, ou seja, cada lei, têm uma eminência sobre o conjunto maior do que as células em meu organismo. O todo que ordena as partes, no caso do direito, é obscuro. Mas ele existe. O direito não é um mero amontoado de possibilidades concretas (e garantidas) de ação. Essas possibilidades são organizadas segundo uma hierarquia. “Hierarquia é subordinação do múltiplo ao uno” (CARVALHO, 1998). A própria existência da norma coativa implica uma possibilidade concreta de ação que apenas o político tem, qual seja, a de fazer valer a norma. Pretensões exigíveis só o são porque o poder político as garante. O poder político garante que as decisões tomadas pelos políticos serão obedecidas. A unidade a que as possibilidades concretas de ação se subordinam é a própria possibilidade concreta de garantí-las. Essas possibilidades serão escalonadas em graus de importância segundo a decisão dos políticos. O político decide que no domingo a pista automotiva junto à praia ficará fechada, limitando a possibilidade dos carros transitarem num sentido. Mas o político também estabelece que só nessa pista, não na outra, os carros estão proibidos, de modo que os pedestres não podem transitar livremente pela outra. Limitações, enquanto tais, são o encontro de dois entes (ao menos), são, por definição, recíprocas. O político estabelece, portanto, limites às possibilidades concretas de ação admitidas (que ele admitiu, garantiu). O propósito da norma é precisamente esse. Ilimitada apenas (por definição) a soberania do poder político. Deve-se entender político em sentido latu, isto é, de modo que inclua os juízes (e até policiais e militares, os quais, embora não escolham qual possibilidade de ação é admitida, garantem-na também). Trata-se dos xátrias. Normas não são apenas as leis aprovadas, mas qualquer mandamento oriundo do político.

XXX          Filosofia da história

Se, do ponto de vista do que ainda deve contribuir na história espiritual da raça humana, uma vez que perderam a condição de empunhadores da tocha de luz divina em Urântia desde que seus sacerdotes entregaram Jesus para a morte, condição que se confirma pelo não surgimento de um profeta hebraico desde João Batista, o povo judeu pode realmente ser considerado um “fóssil”, como quer Toynbee, por outro lado, a série de profetas judaicos foi e continua sendo importante no trabalho religioso. Os indivíduos judeus devem ser considerados como qualquer filho do Pai, indivíduos que podem ter o gênio de Eugen Rosenstock-Huessy, a lucidez amiga de Simone Weil ou o amor de Viktor Frankl. Se não bastasse o que a consciência moral-espiritual já sabe, o Livro de Urântia ainda o confirma. Vale a pena transcrever na íntegra o capítulo ‘A condição individual dos judeus’: “O fato de que, um dia, os líderes espirituais e educadores religiosos da nação judaica tivessem rejeitado os ensinamentos de Jesus e conspirado para provocar a sua morte cruel, de nenhum modo afeta a condição de qualquer indivíduo judeu perante Deus. E isso não deveria levar aqueles que se professam seguidores do Cristo a manter preconceitos contra o judeu como um semelhante mortal seu. Os judeus, como uma nação, como um grupo sociopolítico, pagaram plenamente o terrível preço de rejeitar o Príncipe da Paz. Há muito tempo eles deixaram de ser os portadores espirituais da verdade divina para as raças da humanidade, mas isso não se constitui em uma razão válida para que o indivíduo descendente desses antigos judeus deva ser levado a sofrer as perseguições que têm sido feitas a eles por professos seguidores, intolerantes, indignos e fanáticos, de Jesus de Nazaré, pois foi, ele próprio, um judeu por nascimento. Muitas vezes, essa perseguição e esse ódio desmedidos aos judeus modernos, tão contrários ao modelo crístico, findaram no sofrimento e na morte de alguns indivíduos judeus inocentes e inofensivos, cujos antepassados, nos tempos de Jesus, aceitaram de coração o seu evangelho e morreram sem vacilar por aquela verdade em que acreditavam tão sinceramente. Que arrepio de horror passa pelos seres celestes quando eles observam os seguidores professos de Jesus dedicando-se a perseguir, a atormentar e mesmo a assassinar os descendentes mais recentes de Pedro, Filipe, Mateus e outros judeus palestinos que tão gloriosamente entregaram as suas vidas como os primeiros mártires do evangelho do Reino celeste! Quão cruel e irracional é obrigar crianças inocentes a sofrer pelos pecados dos seus progenitores, por delitos que elas ignoram totalmente, e pelos quais elas não poderiam de nenhum modo ser responsabilizadas! E cometer tais atos perversos em nome de alguém que ensinou os seus discípulos a amar até mesmo aos próprios inimigos! Tornou-se necessário, nesta narrativa da vida de Jesus, retratar o modo com o qual alguns dos seus compatriotas judeus rejeitaram-no e conspiraram para provocar a sua morte ignominiosa; mas gostaríamos de advertir a todos que lêem esta narrativa, que a apresentação de um tal relato histórico, de nenhum modo, justifica o ódio injusto, nem perdoa a atitude mental sem eqüidade, que tantos cristãos professos têm mantido para com os indivíduos judeus, durante muitos séculos. Os crentes do Reino, aqueles que seguem os ensinamentos de Jesus, devem cessar de maltratar o indivíduo judeu como se ele fosse culpado pela rejeição e pela crucificação de Jesus. O Pai e o seu Filho Criador nunca deixaram de amar os judeus. Deus não tem preferências por pessoas, e a salvação existe para todos os judeus como também para os gentios.” (LIVRO DE URÂNTIA, 2007, p. 1909) Ser judeu é ter história. No Parlamento britânico, conta-se que Disraeli respondeu a seu desafeto O’Connell, que se referira com desdém à sua ancestralidade judaica, com as seguintes palavras: “Sim, eu sou judeu e quando os ancestrais do nobre cavalheiro eram brutos selvagens em terra ignota, os meus eram sacerdotes no templo de Salomão.” A história judaica não é bem aquela que nos foi contada pela Bíblia, como mostra o LU no doc. 97, capítulos 8 e 9, espiritualmente inflada, atribuindo a Deus episódios comezinhos da vida secular. A Shoah, a bem da verdade, jamais poderá ser entendida por um judeu ultra ortodoxo, porque ninguém, por mais afastado de Deus que possa estar, mereceria ser punido da forma que foi. Deus não é, nem nunca foi, um retribuidor jurídico do bem e do mal. Não obstante os factoides da história bíblica, a noção de pertencimento a uma comunidade política que se iniciou milênios atrás dá ao indivíduo judeu uma certa segurança sobre aonde ir, sobre o que pode razoavelmente atingir difícil de achar em outro povo. Um judeu não se sentirá como um átomo debatendo-se com outro átomo sem uma molécula que os ordene. Os brasileiros, até por sua miscigenação racial, que de bom nos rendeu uma versatilidade admirável[144], sofrem a falta de história familiar; é difícil um brasileiro saber quem foi e o que fez seu bisavô; de um povo que se diz não ter memória, muitos podem ficar avoados pelo meio do caminho, sem saber que rumo da vida seguir, por que segui-lo e para quem continuá-lo.[145] Os efeitos da imigração rumo a uma terra desconhecida para fazer parte de uma nova nação, que caracteriza em geral os países do Novo Mundo americano, e que em maior ou menor grau cortou as raízes dos imigrantes junto a seus antepassados, que ficaram do lado de lá do Atlântico, no irmão do norte é amenizada pela forte propaganda por uma vida familiar, que no Brasil falta. Acrescente-se que a espinha dorsal religiosa brasileira é a Igreja Católica, instituição monolítica e doutrinária não sediada no Novo Mundo, a quem as particularidades de uma cultura não importam.[146] Religiosamente, é difícil criar uma vida comunitária se a comunidade não pode imprimir traços seus na religião. A tentativa brasileira de fazê-lo, no seio da própria Igreja pós-conciliar, pelas comunidades eclesiais de base, foi o avesso do despertar religioso genuíno, mas uma politização da religião. Pouco a pouco, as igrejas evangélicas brasileiras vêm assumindo esse papel. Requer-se de certos pastores, agora, o preparo intelectual que um padre católico tem e menos animosidade para com seus irmãos cristãos. Dos católicos, menos desdém. “A verdadeira igreja — a fraternidade de Jesus — é invisível, é espiritual e é caracterizada pela unidade, não necessariamente pela uniformidade. A uniformidade seria uma marca, para o mundo físico, de natureza mecanicista. A unidade espiritual é fruto da união de fé com o Jesus vivo. A igreja visível deveria recusar-se a continuar impedindo o progresso da irmandade invisível e espiritual do Reino de Deus. E essa fraternidade está destinada a tornar-se um organismo vivo, ao contrário de uma organização social institucionalizada. Ela pode, muito bem, servir-se dessas organizações sociais, mas não deve ser suplantada por elas.”[146B] (Livro de Urântia, 2007, doc. 195, p. 2085) A espontaneidade alegre do brasileiro, carinhoso – e às vezes cruel – como uma criança pode ser, é boa. “Deixar vir a mim as criancinhas, porque delas é o Reino dos céus.” “A não ser que vocês se tornem como uma criancinha, vocês não entrarão no Reino” (Livro de Urântia, 2007, doc. 196 p. 2089), falou Jesus. O papa João Paulo II chegou a dizer que os brasileiros são cristãos no sentimento, mas não na fé. Manuel Bandeira lembrava com gosto as festas religiosas de moleque. Ele não achava que a fé se resumia a uma brincadeira, porém. A fé é um pensamento, não um sentimento.[147] Precisamos trabalhá-la, para que tenhamos uma fé infantilmente madura, como a de Jesus. Falávamos de história. Como “a filosofia da história efetivamente surgiu no Ocidente, e em nenhum outro lugar que não o Ocidente” (VOEGELIN, 2009, p. 96), e o “programa de uma história universal válida para todos os homens” (VOEGELIN, 2009, p. 96), ou deve destruir a “forma histórica ocidental” (VOEGELIN, 2009, p. 96), onde “as diferenciações da verdade por meio da filosofia e da revelação são esquecidas” (VOEGELIN, 2009, p. 96), ou deve assimilar as sociedades nas quais “o salto no ser não rompeu a ordem cosmológica tão completamente quanto no Ocidente” (VOEGELIN, 2009, p. 96), então, segundo Voegelin, a filosofia da história precisa, para não desprezar a filosofia e a Revelação que lhe deram nascença, nem perder-se no mero apanhado fenomênico de fatos históricos intermináveis, deixando de configurar-se, assim, como filosofia da história, ser precedida de uma filosofia das civilizações, ou seja, de como cada civilização, através dos seus símbolos de ordem, é tributária direta da ordem cristã, ou ao menos lhe corresponde idealmente, ou ainda, antes que nos chamem de ocidentalistas, pode-lhe agregar e desenvolver. Por exemplo, pela tese de McEvilley, na obra ‘The Shape of Ancient Thought’, as similaridades entre as filosofias indiana e grega não são meras coincidências, mas o resultado de contatos diretos entre pensadores das duas origens no império Persa, que ficava entre as duas regiões geográficas de onde eles procediam. Talvez nos tenha escapado algo no pensamento de Voegelin, porém consideramos que a filosofia da história não foi criada pelo Ocidente. A teoria hindu dos ciclos cósmicos é também uma filosofia da história, diferente embora da formulação européia por não apontar uma direção, como essa o faz a partir do eixo que é a encarnação de um Filho de Deus. A filosofia da história na Cristandade é especificamente diferente da hindu, porém nem por isso aquela deixa de ser filosofia da história também. É errôneo o pensamento de René Guénon de que a nossa era, a qual já duraria seis mil anos, seria uma era de sombras. Se assim fosse, Melquisedeque não teria encarnado, nem teria havido o grande renascimento profético do século VI antes de Cristo, muito menos a encarnação de um Filho de Deus em nosso planeta, fato singularíssimo na história. No plano civilizacional, poder-se-ia dizer que a escravidão está em franca decadência em nossa era. A noção de um mito de Ur, de uma religião primordial de Ur, é válida como chave explicativa para um padrão que se percebe em culturas diferentes, inclusive o que se percebe nos mitos de culturas diferentes, ou mesmo de culturas contemporâneas que não entraram em contato, mas não pode ser transmudada na noção de uma religião de Ur histórica que encerrou verdades perdidas de uma tradição primordial. “Abraão e seu irmão deixaram Ur devido ao estabelecimento do culto do sol.” (LU) E mesmo eles demoraram a abrir mão dos deuses de casa que trouxeram consigo em favor de Deus de Salém, que Melquisedeque ensinava. O que quero dizer é que a religião de Ur não era lá avançada. A bem da verdade, Guénon acerta em denunciar os exageros qunatitativistas e o secularismo do mundo moderno, porém o remédio que apresenta é a recusa de progredir (ele padeceu de desesperança espiritual, típica, aliás, de uma certa metafísica hindu). Sua idéia de que a autoridade temporal deve se submeter à autoridade espiritual só é válida num plano pessoal, ou seja, o governante faz bem em ter um vida espiritual sadia, como recomenda Confúcio em trecho que ele cita.[148] Essa submissão, entretanto, não deveria ser institucionalizada. A separação entre Igreja e Estado – essa uma ação histórica que se pode imputar à Maçonaria[149] – é um bem, o Livro de Urântia expressamente diz que a união de ambos deve ser evitada. Para os saudosistas da Idade Média, fiquem sabendo que a Revelação a ratifica como uma idade das trevas, em que a autoridade eclesiástica exerceu uma “dominação totalitária”. Dito isto, a revolta secular passou do ponto. “O grande erro do secularismo foi que, ao revoltar-se contra o controle, quase total, da autoridade religiosa sobre a vida, e depois de alcançar a libertação dessa tirania eclesiástica, os secularistas passaram a instituir uma revolta contra o próprio Deus, algumas vezes tacitamente, abertamente em outras.” (LIVRO DE URÂNTIA, doc. 195, 8, p. 2081) Não vou assoberbá-los repetindo o que o Livro de Urântia diz sobre a história humana futura. O leitor interessado estude os documentos 52 e 55 do Livro. Mas uma coisa deve ser ressaltada. Existe, sim, uma idade futura de ouro, quando planeta entra na era de luz e vida. E o caminho até ela é de progresso gradual, por épocas de aperfeiçoamento espiritual, cultural e biológico. Aperfeiçoamento biológico? Sim. Embora hoje não seja científica, muito menos politicamente correto, referir-se a raças humanas, fato é que elas existem. São seis as raças humanas evolucionárias: vermelha, amarela, azul, negra, verde, alaranjada. As duas últimas desapareceram do mapa exterminadas em guerras raciais entre si e depois com os negros. A Azul foi a que mais se miscigenou com o sangue violeta da cepa de Adão e Eva, dando no que se chama hoje de raça branca. É natural que as pessoas tenham medo da eugenia, uma vez que ficou muito associada com o nazismo alemão. Porém, a eugenia que o L. U. prega não comporta o genocídio de judeus ou da raça negra. Ele prega, ao revés, a multiplicação dos estratos superiores de homens com uma margem folgada sobre os estratos inferiores.[150] O que são estratos superiores e inferiores de homens? Não sou geneticista, médico ou biólogo, mas sei que a mãe biológica do atirador de Realengo sofria com problemas mentais. É o caso de se perguntar se ele sequer deveria ter nascido. Um exemplo mais óbvio onde a eugenia poderia ser praticada: criminosos reincidentes seriam esterilizados. “Terão os governantes de Urântia o discernimento e a coragem para promover a multiplicação do ser humano médio ou estabilizado invés dos extremos do supranormal e dos grupos enormemente crescentes de subnormais? O homem normal deveria ser promovido; ele é a espinha dorsal da civilização e a fonte dos gênios mutantes da raça. O homem subnormal deveria ser mantido sob o controle da sociedade; não deveriam ser gerados mais do que o necessário deles, para trabalharem nos níveis mais baixos das indústrias e para as tarefas que requerem uma inteligência pouco acima do nível animal; tarefas cujo nível de exigências é tão exíguo a ponto de representarem verdadeiras escravidões e subjugação para os tipos mais elevados de seres humanos.” (Livro de Urântia, 2007, doc. 68, p. 770) Como disse um amigo, o homem seleciona cavalos, cachorros, cereais, só não seleciona a si mesmo. Filosofias da história ficaram desacreditadas depois do comunismo e do nazismo, que propunham o “fim da história” ou o império de mil anos. Eles espionaram e prejudicaram vidas pessoais, perseguiram, mataram e trouxeram miséria. A visão cristã, a seu turno, de um juízo final que encerra e dá sentido às épocas, válida embora sobre outros aspectos, nada elucida sobre estágios da evolução humana. É hora de considerarmos de novo a filosofia da história, não mais sob prismas ideológicos, mas sub specie aeternitatis, pela progressiva realização da amizade entre o homem, seres celestiais e a divindade.

Livro III

Neste livro, tratar-se-á de assuntos variados do direito, sem um encadeamento necessário entre uns e outros, como numa pasta miscelânea. Nossa casuística começa pelos significados do termos justiça.

XXXI Significados do termo justiça

They would not have known the name of justice if these things were not. (Heráclito, fragmento 23)

Cumpre agora discriminar os significados que a palavra justiça pode assumir. Quando o comentarista esportivo diz que o resultado do jogo não foi justo, ele se refere ao merecimento, a partir do que os times apresentaram durante a partida. Entretanto, no jogo ganha quem tiver alcançado a pontuação, segundo a regra. Não basta ter desenvolvido um bom volume de jogo, sem conseguir pontuar. As mulheres desejam saber se a calça que vestiram na loja ficou “justa”. Quando a calça ficou “justa demais”, é porque está apertada. Neste caso, a palavra justiça relaciona-se com noção de medida. Será a mesma acepção com que Aristóteles deseja qualificá-la, qual seja, a de uma virtude, que, como ele as define genericamente, situa-se entre e acima a dois vícios, a falta e o excesso. De sorte que o credor, para ser justo, deve exigir numericamente o que lhe é devido. Se exigir mais, procederá com injustiça. Se exigir menos, entretanto, ultrapassará o valor justiça para ser misericordioso, o que é ainda mais virtuoso. O esquema aristotélico da virtude como equilíbrio prático e positivo entre dois extremos nem sempre funciona portanto, o que Aristóteles, para sermos justos, admite e explica. Um significado bíblico e corrente é o do homem virtuoso em geral. “Iustitia, (…) ex qua viri boni nominantur.” (CÍCERO, De Officiis, Liber Primus, 20)[151] O homem justo é o homem de bem.

XXXII Natureza do Contrato

Contrato é uma troca ou cessão consentida de direitos.[152] Quando o vendedor entrega o bem vendido, ele transfere a propriedade do bem, o direito de propriedade do bem, para o comprador. Quando este lhe entrega o dinheiro — aqui está o ponto! –, dá-lhe o direito à aquisição de bens ou outros direitos que o próprio vendedor determinará, conforme a quantidade recebida e seus desejos. O dinheiro é, portanto, um direito.[153] Como tal, precisa ser garantido por uma autoridade. Mas o dinheiro é um fenômeno cujo surgimento deve-se antes à engenhosidade dos agentes econômicos de um grupo social interessados em aumentar as possibilidades de troca, do que à antevisão do agente político que planeja expandí-las. Sendo assim, o governo assume uma situação que não criou. Há, portanto, um lapso lógico-temporal entre o surgimento do dinheiro e seu reconhecimento como direito, durante o qual ele é uma expectativa de direito, a qual se confirma uma vez contratada, por exemplo, uma compra-e-venda. Quando Mises disse que “dinheiro é a mercadoria mais vendável”, estava se referindo à forma que ele assume, seja cabeças de gado, sal, ouro, prata, papel-moeda, não ao que ele é.

XXXIII Valores, Direitos e Pretensões

Tão comum nas audiências da Suprema Corte americana, é de se lamentar que os ministros de nosso Supremo Tribunal não interpelem os advogados durante suas palestras, pressionando-os com teses contrárias, ou fornecendo-lhes pistas, para ajudá-los a dar a sua melhor visão do caso, a qual então já pode se situar no limiar do discurso oratório com o valor objetivo da questão.[154][155] Talvez fosse o caso de o julgador deixar de lado a conceituação de valores com os quais estaria lidando, e buscar, objetivamente, o valor da questão. A ponderação valorativa implica, às vezes, aceitar como candidatos válidos à ponderação valores que no caso concreto são vazios[156], como num jogo de cena em que, por exemplo, sempre que se indagasse sobre o direito à intimidade necessariamente ter-se-ia que invocar o direito à informação. Quando o jurista diz que é preciso ponderar os direitos em questão, não atenta para o fato de que está tomando como extenso algo que só pode ser intenso, conforme a terminologia de Mário Ferreira dos Santos e de Wilhelm Ostwald. Reparem que não se trata das consequências pecuniárias do direito, uma vez que é reconhecido. Mas de uma transladação indevida, porque irreal, de um valor, intenso portanto, para o plano extenso, onde será sopesado com outros valores na balança jurídica. Como já se mostrou, o direito encerra um valor. Valores e direitos não podem ser sopesados[157]. Interesses e pretensões podem. Há um erro aqui de terminologia dos juristas. É claro que se justifica na linguagem quotidiana do advogado o uso da expressão “conflito de direitos” para casos cuja solução é delicada, como o da peça Eumênides, que abaixo veremos, quando o melhor seria dizer que há um conflito de pretensões razoáveis. Referir-se tão somente a conflito de pretensões pode não dar a dimensão do problema que a expressão “conflito de direitos” denota, porque pareceria tratar-se de um caso mais simples. Numa situação-limite em que dois interesses razoáveis se chocam, pode acontecer de o árbitro ter que satisfazer ou conciliar ambas as partes, as quais deverão permitir-se uma cedência recíproca de interesses. A tragédia Eumênides, de Ésquilo, trata da tentativa da deusa Atena de apaziguar os ânimos das Fúrias que querem punir o matricídio de Orestes, o qual agiu em vingança contra o assassinato de seu pai e coagido pelo oráculo de Apolo. Atena aceita refugiar Orestes na pólis Atenas, da qual é patrona, mas reconhece que as Fúrias devem ser reparadas. “Se se considerar que o caso é muito grave para ser decidido por simples mortais, tampouco terei permissão para julgar os criminosos motivados em seus atos pelo desejo rancoroso de vingança; sob outro aspecto, chegas como suplicante, purificado pelos ritos pertinentes e inofensivo para o meu sagrado altar. Por isso minha decisão é acolher-te pois tua vinda não ofende esta cidade. Mas estas criaturas que te perseguiram sem dúvida são detentoras de direitos merecedores de toda a nossa atenção; se lhes negarmos a vitória em sua causa todo o veneno do seu ódio cairá sobre esta terra como um mal intolerável trazendo-nos intermináveis amarguras. Nesta situação, quer eu lhes dê ouvidos, quer não as favoreça, terei de sofrer inevitáveis dissabores. Entretanto, já que a questão chegou a meu conhecimento indicarei juízes de crimes sangrentos, todos comprometidos por um juramento, e o alto tribunal assim constituído terá perpetuamente essa atribuição. Apresentai, então, vós que estais em litígio, testemunhas e provas–indícios jurados bastante para reforçar vossas razões. retornarei depois de escolher os melhores entre todos os cidadãos de minha Atenas, para que julguem esta causa retamente, fiéis ao juramento de não decidirem contrariamente aos mandamentos da justiça.” (ÉSQUILO) Orestes não teve necessidade de satisfazer de alguma maneira as Fúrias. A deusa Atena considerou que ele já se expurgara pelos “ritos pertinentes” do ato terrível que praticara e concedeu às Fúrias, relutantes a princípio, mas, paparicadas, cedendo por fim (antes isso que ficar de mãos abanando), um templo na cidade de Atenas onde serão devidamente homenageadas e zelarão pela justiça (não mais pela vingança) entre os atenienses. “Como é difícil para o homem”, exlamou Goethe, “contrabalançar o que tem a sacrificar com o que tem a ganhar!” (GOETHE, 2008, p.55) Conquanto os parâmetros objetivos sejam importantíssimos para o exercício da função jurisdicional, parece-nos que sempre haverá casos ainda não padronizados, sem um standard de referência, e mais crucial ainda, casos pra os quais os critérios do método ponderativo pouco poderão servir, os quais estarão a pedir um discernimento valorativo que só pode ser bem feito por pessoa leal aos valores supremos e bastante experimentada, capaz de ver no fato os significados de valor. Claro que, uma vez achado o caminho das pedras, poder-se-á mapeá-lo, criterizando a função. No entanto, o juiz pode ter de se preparar para trabalhar em casos onde o decisivo é antes o seu sentimento do bom, aguçado em sua sabedoria prática, do que os argumentos que dará para racionalizá-lo (antes a razão espontânea que a razão refletida[158]). Assim é na vida, não é diferente na Corte.[159]

 

XXXIV A Teoria dos Quatro Discursos Aplicada ao Direito

Logo que conheci a teoria dos quatro discursos explicada por Olavo de Carvalho, ela se me associou com as fases por que um caso jurídico pode passar. Basicamente, a teoria dos quatro discursos afirma que o homem comunica-se nos quatro níveis de experiência que teve com um fato ou questão, desde o imaginário poético até a lógica, passando pela retórica e a discussão dialética. Vejamos, pois, como Olavo explica cada discurso. “1. As quatro ciências do discurso tratam de quatro maneiras pelas quais o homem pode, pela palavra, influenciar a mente de outro homem (ou a sua própria). As quatro modalidades de discuro caracteizam-se por seus respectivos níveis de credibilidade: (a) O discurso poético versa sobe o possível[160], dirigindo-se sobretudo a imaginação, que capta aquilo que ela mesma presume. (b) O discurso tem por objetivo o verossímel e por meta a produção de uma crença firme que supõe, para além da mera presunção imaginativa, a anuência da vontade; e o homem influencia a vontade de um outro homem por meio da persuasão, que é uma ação psicológica fundada nas crenças comuns. Se a poesia tinha como resultado uma impressão, o discurso retórico deve produzir uma decisão, mostrando que ela é a mais adequada ou conveniente dentro de um determinado quadro de crenças admitidas. (c) O discurso dialético já não se limita a sugerir ou impor uma crença, mas submete as crenças à prova, mediante ensaios e tentativas de traspassá-las por objeções. É o pensamento que vai e vem, por vias transversas, buscando a verdade entre os erros e o erro entre as verdades. O discurso dialético mede enfim, por ensaios e erros, a probabilidade maior ou menor de uma crença ou tese, não segundo sua mera concordância com as crenças comuns, mas segundo as exigências superiores da recionalidade e da informação acurada. (d) O discurso lógico ou analítico, finalmente, partindo sempre de premissas admitidas como indiscutivelmente certas, chega, pelo encadeamento silogístico, à demonstração certa da veracidade das conclusões.” (CARVALHO, 1996, pp. 31-32)[161] Desde o fato jurídico até o deslinde da situação jurídica pelo julgador, o caso será compreendido e explicado em várias camadas nas quais usaram-se os discursos. Essas camadas transcendem o próprio processo judicial, o qual iniciar-se-á apenas quando o discurso retórico já for possível. Antes, tão logo aconteça o fato jurídico, as pessoas que com ele se defrontem e, especialmente, aquelas a quem ele interessa, formarão em seu entorno um imaginário a partir da impressão havida.[162] É o momento da fantasia, conforme Aristóteles a entende, ou seja, como a memória imaginativa, quando o individual sentido pode ser representado com uma imagem que nós mesmos nos exibimos, e que consegue dar um caráter de generalidade ao individual – sem, entretanto, num paradoxo que admira Olavo, tirar-lhe o caráter individual –, preparando-o assim para ser conhecido logicamente também.[163] Inicia-se o processo judicial pela demanda, o “ato pelo qual alguém pede ao Estado a prestação de atividade juridicional.” (MOREIRA, 2001, p. 9) Para convencer o juiz da justeza de seu pedido, a parte e seu advogado deverão aduzir razões de fato e de direito plausíveis, verossímeis. O que antes formava a imaginação da pessoa em relação a um fato tornou-se, com a ajuda de um advogado, em uma exposição persuasória sobre os efeitos jurídicos que se deseja que daquele fato decorram. Citado, o réu poderá contestar o pedido do autor, manifestando-se precisamente sobre os fatos narrados na peça inicial e “expondo as razões de fato e de direito com que impugna” seu pedido (art. 300 do Código de Processo Civil de 1973). Novamente, a parte e seu advogado deverão fornecer razões verossímeis, agora para que se não reconheça a justeza do pedido. Considerados os discursos de ambas as partes e as provas produzidas, o juiz chegará a uma decisão onde aponta o que crê razoavelmente que aconteceu e qual o direito que se aplica aos fatos que admitiu verdadeiros, julgando, nesses termos, procedente ou improcedente o pedido. Terá o juiz, aqui, aceitado a “probabilidade maior de uma tese, segundo as exigências superiores da racionalidade – dir-se-ia razoabilidade no vocabulário jurídico — e da informação acurada.”[164] A lógica é um instrumento da fase dialética de confronto de teses, quiçá da fase retórica de apresentação convincente de uma delas, não a cereja do bolo da decisão judicial. Considerá-la como um discurso mais elevado que os outros é um erro grosseiro que tem sido cometido por filósofos de calibre. A lógica nunca pode ser mais do que um instrumento, salvo na matemática, a ciência-meio por excelência. Foi por pensar logicamente o juízo ontológico de Anselmo (“O ser maior que existe necessariamente existe”) que Kant não o entendeu. Ele concebeu esse ser como um mero conceito, como um esquema noético-abstrato, não como o esquema formal (in re) de um ente possível. Mário Ferreira dos Santos desfaz a confusão: “Negar a autonomia existencial do conceito não é ainda negar a existencialidade do esquema concreto do fato, do qual ele é apenas um esquema de esquema, um esquema abstrato.” (SANTOS, 1956, tema 1, art.2) Negar um conceito é uma operação mental que qualquer um pode fazer, tanto que Kant negou a existência do ser necessário. Negou-a porque o entendeu conceitualmente apenas. A correlação com o direito no plano lógico nos parece mais difícil, uma vez que nem todos os fatos jurídicos adequar-se-ão com justeza a hipótese de uma norma (como queria Kelsen[165]) para daí se extrair uma conclusão necessária. Nos hard cases, mais valerá a devoção aos significados e valores objetivos que a situação insinua ao entendimento (o nome disso é julgar com equidade), do que a confiança no direito positivo. Cumpre ouvirmos Olavo antes de tecermos demais considerações: “Finalmente, no plano da lógica analítica, não há mais discussão: há apenas a demonstração linear de uma conclusão que, partindo de premissas admitidas como    absolutamente verídicas e procedendo rigorosamente pela dedução silogística, não tem como deixar de ser certa. (…) (CARVALHO, 1996, p. 36) O leitor jurista deve ter desconfiado de que no direito a “demonstração linear de uma conclusão”, a par da mencionada subsunção do fato jurídico à hipótese da norma positiva, só se realiza quando os juízes de instâncias inferiores chancelam decisões já tomadas em casos semelhantes pelos tribunais superiores. Ou quando se trata, por exemplo, de uma questão processual técnica, como saber qual lei deva ser aplicada para um caso.[166] Insistimos que nos “hard cases”, a discussão – porque se trata de uma discussão – dar-se-á no nível dialético do discurso. A conclusão dos debates não terá chegado a uma certeza apodíctica, porque o direito não é uma ciência lógica tão somente, porém, em grande parte, valorativa também.[167][168][169] De resto, não se pode voltar atrás no tempo para rever detalhes de um fato jurídico. Tampouco tem o direito aquela característica das ciências naturais e lógicas que as permitem replicar experimentos, bem como formular hipóteses explicativas e testá-las repetidamente, o que lhe põe em desvantagem no conhecimento de seus dados.[170] Parece-nos, portanto, que a lógica resolverá algumas das questões atinentes ao processo decisório do julgador, mas não é o cume de seu trabalho. Antes, ele amadurece pelo burilar dos fatos, valor e norma aplicável.

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[1]               À objeção possível de que Aristóteles desenvolveu toda uma teoria sobre a virtude da justiça no livro V da Ética a Nicômaco, diremos que o empreendimento de Aristóteles foi exatamente isso: uma teoria sobre a virtude da justiça, e não uma teoria sobre o direito propriamente. Já adiantando o tema do trabalho, a filosofia do direito que Voegelin procura deve considerar o ordenamento jurídico positivo, bem como a história do direito, o processo de lege ferenda, e ainda, talvez como ponto mais importante, a ordem simbólica que embasa toda a construção político-jurídica da sociedade. Não obstante, os trabalhos de Platão e Aristóteles tiveram excelente contribuição para a filosofia do direito. Neste sentido, conferir o capítulo VI do trabalho.
[2]               Parênteses em negrito acrescentado por mim.
[3]               Ver explicação sobre o conceito de “agora” nos Comentários de Tomás de Aquino à Física de Aristóteles. Conferir Livro VI, II, 3. Antes mesmo dele, o autor do Tattva-Vaiçaradi, explicação de um comentário aos Yoga-Sutras de Patanjali, dizia que “uma vez que o momento é indivisível, não pode ter [dentro de si] a relação de antes e depois.” (The YOGA-SYSTEM OF PATANJALI, 1914, p. 67, tradução minha) No capítulo Consciência da Fenomenologia do Espírito, Hegel teria feito bem em ler essa explicação antes de dialetizar o agora, reduzindo-o a um mero fragmento temporal que, assim, só pode ser universalizado se abandonar sua realidade experiencial. Além do agora que se esvai em cada momento há o agora que subjaz a todo devir: a eternidade mesma em sua presença no tempo. E Tomás de Aquino o sabia bem. Como indivisível, o agora não é quantitativo, mas a qualidade do tempo, que contém os momentos passados e futuros. Podemos analogizá-lo com o ponto dentro de um segmento de reta, que tampouco é divisível e possui todas as direções. O presente, portanto, não é mensurável, mas se o identifica por uma situação. Por exemplo, agora vocês estão lendo esse texto. “Tornar-se maduro é viver mais intensamente no presente, escapando, ao mesmo tempo, das limitações do presente” (Livro de Urântia, 2007, doc. 118, p. 1295). Intentemos aqui um juízo da proposição urantiana: trata-se de viver não o presente que a sucessão limita, mas o presente que se experencia neste momento, articulado com a experiência passada e o que se antevê como possibilidade efetiva.
[4]               Nossa associação de idéias nos aponta analogia entre o conceito de “agora” com o de hábito, desenvolvido por Félix Ravaisson. Enquanto “o hábito é o limite comum, ou o meio termo entre a vontade e a natureza, (…) um meio termo móvel, um limite que se desloca sem cessar, (…)” (RAVAISSON, p. 20, tradução nossa), o agora é o limite comum do passado com o futuro e, como tal, segundo a definição de Avicena, é o pelo que a coisa quantitativa atinge o ponto que ela não pode ultrapassar. Isto é, a partir dali o quantitativo não explica mais a coisa. Este limite do passado e do futuro pode, como vimos na nota de rodapé anterior, ser ele próprio vivido como ilimitado, enquanto sustância do eterno no tempo. Sobre o tema do limite, ver também o estudo sensacional de Mário Ferreira dos Santos na obra Filosofia da Crise.
[5]           Se a explicação de Aristóteles ainda parecer complicada, a matemática pode ajudar na solução do paradoxo. Os infinitos intervalos de tempo descritos no paradoxo formam uma progressão geométrica e sua soma converge para um valor finito. A soma dos infinitos elementos de uma P. G. infinita não é infinita. Aquiles, para alcançar a tartaruga, deverá correr a distância S = 100 + 10 + 1 + 1/10 + 1/100 + … Observe que S é a soma dos termos de uma PG infinita decrescente: a1 = 100, a razão q = 1/10. Daí, vem que a soma é S = a1(qn – 1) / (q – 1) , mas, com n tendendo a infinito. Dizemos, então, que o limite da soma S, quando n tende a infinito, é S = a1 / (1 – q), pois como q = 1/10 e n tende a infinito, vem que q n tende a zero. Assim,  S = a1 / (1 – q) = 100 / (1 – 1/10) = 100 / (9 / 10) = 1000 / 9 = 111,1111 … Essa é a distância que Aquiles terá que percorrer para alcançar a tartaruga.
[6] Curioso observar que de Zenão a Aristóteles (se admitirmos uma primeira fase em que a percepção esteja embaralhada), a compreensão do tempo assemelha-se às “três fases da evolução criadora: Urano (sem equivalente no mito latino) é a efervescência caótica indiferenciada, chamada cosmogenia; Crono (Saturno) é o podador, corta e separa. Com um golpe de foice ceifa os órgãos de seu pai, pondo fim a secreções indefinidas. Ele é o tempo da paralisação. É o regulador que bloqueia qualquer criação no universo. É o tempo simétrico, o tempo da identidade. Sua fase denomina-se esquizogenia. O reino de Zeus (Júpiter) se caracteriza por uma nova partida, organizada e ordenada e não mais caótica e anárquica: a esta fase A. Virei chama autogenia. Após a descontinuidade, a criação e a evolução retomam seu caminho”. (BRANDÃO, 1986, p. 192). Igualmente, da cosmovisão simbólica, passando pelo Ser estático de Parmênides até chegar à descoberta platônica do não-ser que, embora sem ser ainda, indica que será (potência e ato), vai-se por uma caminho semelhante.
[7] Na árvore da vida da cabala judaica, não é à toa que a sefira Daat (conhecimento) seja representada por um círculo tracejado. Conferir o curto e elucidativo vídeo “A sefira do conhecimento”.
[8] “Siehe, ich stehe vor der Tür und klopfe na, und wenn jemand mir öffnen will, werde ich hineinkommen” (L. U., doc. 159, p. 1765).
[9] E foi muito bem explicado por Luiz Gonzaga de Carvalho Neto, na aula Antropologia escolástica.
[10] O animal, na realidade, não escolhe. Ele estima o que lhe será mais vantajoso. Mas essa estimativa pode falhar. O gato salta de um lado para o outro, mas às vezes toma um tombo. Por quê? Porque calculou mal. Ou porque sua capacidade de cálculo não é tão boa assim.
[11] Animais enxergam possibilidades também, a potência estimativa é um enxergar de possibilidades. Mas o animal só intui possibilidades cuja atualização seja iminente ou que lhe são puxadas da memória as quais necessariamente têm relação com seus apetites sensíveis, isto é, com aquilo que lhe agrada ou desagrada, com aquilo que lhe é útil ou não. Ele não enxerga novas possibilidades porque contemplou, como o homem, a realidade do objeto.
[12]             Tradução nossa: Do mesmo modo que Deus cria o mundo continuamente a cada segundo, também a existência do Leviatã é ela uma criação contínua de vontades individuais. Sem dúvida o pacto está presente de uma vez por todas, e desde esse momento liga-se a seu autor, porque seria um absurdo que ele se contradissesse a si mesmo, e porque a causa do contrato, qual seja a paz garantida pelo príncipe, permanece.
[13]             Sobre a construção de Hobbes, sua teoria a respeito da lei natural humana, que seria a auto-sobrevivência, e o estado natural de guerra, vale a pena transcrever a seguinte passagem do Livro de Urântia: Os intelectos parciais, incompletos e em evolução estariam desamparados no universo-mestre, seriam incapazes de formar o primeiro modelo de pensamento racional, não fosse pela capacidade inata de toda mente, mais elevada ou mais baixa, de formar um quadro do universo dentro do qual pensar. Se a mente não pode estabelecer conclusões, se não pode penetrar as verdadeiras origens, então essa mente irá, infalivelmente, postular conclusões e inventar origens para que possa ter um meio de pensar logicamente dentro da moldura desses postulados criados pela mente. E, conquanto essas molduras do universo para o pensamento da criatura sejam indispensáveis à operação intelectual racional, elas são, sem exceção, errôneas, num grau maior ou menor. Os quadros conceituais para o universo são apenas relativamente verdadeiros; eles são um andaime útil que deve finalmente ceder o seu lugar diante das expansões de uma compreensão cósmica ampliada. (Livro de Urântia, 2007, doc. 115, p. 1260) Hobbes teve que conceber juízos lógicos que o ajudassem na compreensão de uma sociedade, a inglesa, arrasada pela guerra civil. Ele montou um quadro de referência para propor soluções de paz, as quais são sempre muito queridas, o que não nos impede de considerarmos seu quadro de referência como bastante parcial. Porque o homem, a despeito da fazer guerras e espalhar destruição, é o mesmo capaz de reconstruir um país e praticar atos de caridade ou filantropia. Não nascemos num estado natural hipotético, mas dentro de uma sociedade já historicamente formada. Na pior das hipóteses, seremos filhos de uma mãe solitária num ambiente hostil – aliás, sempre me intrigou na elucubração hobbesiana por que uma mãe não mataria seu filho, se a luta por sobrevivência fosse tal que não admitisse competição –; informa-nos John Bramhall, seu opositor mais renhido, que Hobbes de fato justificava essa atitude de um pai. Conferir BRAMHALL, 1844, p. 566 e HOBBES, 1841, p. 180. Jamais teria havido uma segunda geração de homens se sua condição fundamental fosse “guerra de todos contra todos” (HOBBES, The Leviathan, Chapter XIV, tradução minha).
[14]             O filósofo e moralista britânico Anthony A. C. Shaftesbury ironiza a construção de Thomas Hobbes: “It is ridiculous to say, there is any obligation on man to act sociably or honestly, in a formed government, and not in that which is commonly called the state of nature. For, to speak in the fashionable language of our modern philosophy, “society being founded on a compact, the surrender made of every man’s private unlimited right, into the hands of the majority, or such as the majority should appoint, was of free choice, and by a promise.” Now, the promise itself was made in the state of nature; and that which could make a promise obligatory in the state of nature, must make all other acts of humanity as much our real duty, and natural part. Thus faith, justice, honesty, and virtue, must have been as early as the state of nature, or they could never been at all.” (Shaftesbury, 2005, p. 92)
[15]             Conferir Voegelin, The Oxford Political Philosophers, em Published Essays 1953-1965, ps. 35-36.
[16]             A reaproximação entre o direito e a ética nada mais é do que o resgate do dever ontológico aqui reclamado por Voegelin.
[17]             A principal delas, sabe-se, é a disputa em torno do aborto. O Livro de Urântia não é categórico sobre o aborto. Uma boa opinião sobre ele com base no Livro encontra-se aqui: http://www.truthbook.com/toughest/dsp_viewToughQuestion.cfm?toughquestionID=3490.
[18] No romance Turbilhão.
[19]             No dia 3 de novembro, Deodoro deu um golpe de Estado, fechando o Congresso Nacional, que lhe era desfavorável. Mas a ditadura não durou sequer um mês, Deodoro estava doente; foi logo substituída pelo governo de Floriano Peixoto, o qual se revelou, este sim, uma ditadura às vezes cruel.
[20] Considerar a matéria como princípio de individuação do homem é considerá-lo apenas do ponto de vista físico, ignorando seu temperamento, certos traços genéticos, personalidade e Ajustador do Pensamento. Há, ademais, traços que ao longo da vida ajuda a construir, quais sejam, sua biografia, que pela memória lhe pertence, e sua própria alma. Ao intelecto, complete-se, não repudia inteligir o singular, mas o material apenas, lembra Tomás.
[21]             Conferir GUÉNON, El Reino de la Cantidad y los Signos de los Tiempos, capítulo VI, El Principio de Individuación.
[22]             Que dizer de Leon Tolstoi e seu anseio pelo individual manifestado no conto A morte de Ivan Ilitch, sobretudo no trecho abaixo, o qual Gustavo Corção, ele também ocupado com o tema do individual, copiará em seu romance Lições de Abismo.? “Ivan Ilitch, vendo que ia morrer, desesperava-se. No dundo da alma sabia, estava certo de que ia morrer, mas era incapaz de se habituar à idéia; não a compreendia sequer; não conseguia realmente assimilá-la. O exemplo de silogismo que aprendera no manual de Kieseweter, “todos os homens são mortais, ora Caio é homem, logo Caio é mortal”, parecia-lhe exato enquanto se tratasse de Caio, mas não quando se tratasse dele, Ivan. Caio era homem, um homem, homem-em-geral, logo era forçoso que morresse. Mas ele, Ivan, não era Caio; nem era um homem-em-geral. Era Ivan, um ser à parte, totalmente à parte dos outros seres. Era o pequenino Vania para a sua mamãe, para o seu papai, para Mitia e para Velodia. Era Vania também para a ama-seca e para o cocheiro; e mais tarde para Katenka. Em todas as alegrias, em todos os sofrimentos, em todos os entusiamos da infância, da adolescência e da juventude, ele era sempre Vania.”
[23] Não nos convence a contra-argumentação de Tomás a essa objeção, que se encontra no capítulo 5 do opúsculo De Unitate Intellectus: “Should anyone object that, if the many souls are multiplied according to bodies, it follows that they will not remain when the bodies have been destroyed, the response is obvious from what has already been said. A thing is one in the way it is a being, as is said in Book Four of the Metaphysics; therefore, for the soul to be is to be in the body as its form, nor is it prior to the body, nonetheless it remains in existence after the body is destroyed: thus each soul remains in its unity and consequently many souls in their manyness.” (AQUINAS, chapter V)
[24]             Como disse um colega leitor: “Se esse livro for, ou não, uma revelação, não faz mal, mas em ambos os casos faz bem!”
[25]             Conferir BEITES, 2005.
[26]             Tradução nossa.
[27]             Se a unidade forma-matéria já é complicada para explicar o homem, quanto mais para a sociedade.  Aristóteles deixa entrever uma vez pelo menos que aceita a alma como distinta não só de um corpo mas também de uma mente — ele chama a mente exatamente de “uma substância independente implantada na alma” (tradução minha) — na constituição humana (Cf. ARISTOTLE, On the Soul, Book 1, Part 4), mas não o esclarece a contento. Considerar o homem como um composto de corpo e alma apenas, não se sabendo se pelo conceito de alma se designa as faculdades mentais-intelectivas ou as espirituais, ou ambas, será um problema hoje. Não ajudou também a tradução do trabalho conhecido por Περι ψυχης (Sobre a psique), em grego, para De anima (Sobre a alma), em latim. Psique a alma não não são equivalentes. A primeira é sinônimo de mente, cuja realidade é material. Já a alma não chega a ser apenas espiritual e também não é mais material, sua realidade é moroncial, ela é adquirida pela experiência de querer fazer a vontade do Pai e destina-se a sobreviver uma vez finda nossa trajetória na carne. O Bhagavad Gita diferencia com perfeição os elementos do homem: “Fortes são os sentidos (kama); mais forte é a mente (manas); mais forte ainda é a alma (buddhi) – e acima de tudo está a luz divina da Verdade (Atman).” (1989, BHAGAVAD GITA, III, 42) Sublinhe-se, no entanto, que essa “luz divina da Verdade” não é um espírito absoluto, comum a todos os seres espiritualizáveis, mas um fragmento do Pai que mora em cada homem, o chamado Ajustador do Pensamento. Plotino, em Sobre o Bem ou o Uno, 10, demonstra saber que há um componente distinto do intelectivo: “(…) o ato de contemplar e o contemplador não são raciocinantes: são superiores, anteriores, transcendentes ao raciocínio (logismoi) (…)” (PLOTINO, 2007, p.142). Também Viktor Frankl: “(…) em vez da unidade corpo-alma do animal encontramos, no homem, a totalidade corpo-alma-espírito” (FRANKL, 1978, p. 166); e René Guénon souberam que o homem tem corpo, mente e espírito. Para uma análise do tema fundada no Livro de Urântia, conferir LOURENÇO, Daniel. Erro de Zubiri, 2010. Ninguém talvez tenha explicado melhor a diferença específica entre alma e mente no plano da experiência pessoal que Whittaker Chambers, em Witness. A filha de um ex-diplomata alemão lhe contou como seu pai, um vigoroso comunista, tornou-se um inveterado anti-comunista. “Uma noite ele ouviu choros”, disse-lhe. “Que comunista nunca ouviu esses choros? (…) Esses choros chegaram à mente de todo comunista. Normalmente param por ali. (…) Mas um dia o comunista ouve de fato aqueles choros. Ele está executando suas tarefas partidárias rotineiras. (…) De súbito, aproxima-se daquele comunista um silêncio apartado, e naquele silêncio ele ouve choros. Pois eles não chegam apenas à sua mente. Eles penetram além. Eles penetram em sua alma. Ele diz para si mesmo: “Esses não são os choros de um homem em agonia. Esses são os choros de uma alma em agonia.” Ele os ouve pela primeira vez porque uma alma em situação extrema comunicou-se com aquilo único que lhe pode ouvir – outra alma humana.” (CHAMBERS, 1952, pp. 14-15) Outra alma humana, que quando faz bem a um desses pequeninos, é a Ele que o faz. Chorar com o próximo – e sorrir também, claro – pode ser uma das experiências mais genuínas por que passamos. Quando o homem discerne os motivos e sentimentos que movem o próximo, ele começou a amá-lo.
[28]             Tradução nossa.
[29]             A mentirinha técnica pode ser importante, por exemplo quando adiantamos o relógio em cinco minutos para não nos atrasarmos. Deve-se ser capaz de lembrar, no entanto, quando é o caso, de que se trata de uma mentira, evitando confusões.
[30]             REALE, Miguel, Fundamentos do Direito, São Paulo, 1940, pp. 301-302, apud, REALE, Miguel, Lisboa, 2003, p. 71.
[31]             As normas programáticas “contemplam certos interesses, de caráter prospectivo, firmando determinadas proposições diretivas, desde logo observáveis, e algumas projeções de comportamentos, a serem efetivados progressivamente, dentro do quadro de possibilidades do Estado e da sociedade.” (BARROSO, 2006, p. 114)
[32]             A esse respeito, conferir Platão, República, livro V, 450b-d e 472c-473c.
[33]             Na Carta VII, o filósofo afima explicitamente: “Desde jovem (…) passei por uma experiência comum a muitos e me decidi firmemente a uma coisa: apenas em condição de dispor da minha vontade, logo dedicar-me à vida política.” Apud Reale, Giovanni, 2007, p. 236.
[34]             Grifo meu.
[35] Pergunte a Lênin e a Stálin se eles considerariam deixar o posto de secretário-geral do partido comunista para se tornarem proletários.
[36]             Por isto, o direito vem na rabeira do poder, com o que Platão parece concordar ao dizer que: “Não deve haver dúvida de que a legislação é trabalho para o monarca, entretanto o melhor não é que a lei governe, mas que um homem com as credencias de sabedoria e autoridade monárquica governe.” (PLATO, The Statesman, tradução minha a partir da versão inglesa) A predileção dos filósofos da Academia pela monarquia ou aristocracia, como forma de governo, em detrimento da democracia, também nos incomoda, mas não a ponto de rejeitarmos preciosas lições que podem nos dar.
[37]             Também no diálogo Político, Platão dirá: “Então só pode haver uma forma de governo verdadeiro, aquele onde os governantes possuem a ciência (de       governar), os quais não estão ali por acaso. (…) Todos outros governos não são genuínos ou reais; mas apenas imitações deste, e alguns são melhores e outros piores; do melhor se diz que é bem governado, mas também são meras imitações como os outros.” (PLATO, The Statesman, tradução minha a partir da versão inglesa)
[38]             O rei Luís IX, da França, que não era filósofo, mas foi santo, tendo sido canonizado em 1298 com o nome de São Luís da França, pode ser considerado um exemplo de monarca semelhante ao que Platão tinha em mente ao conceber o modelo hipotético da República. Outro exemplo, mais evidente, é o de Marco Aurélio, que além de imperador romano, foi também um filósofo consideradável. Entretanto, como bem o sabia Platão, a possibilidade de um governante filósofo acontecer é remotíssima, e por isso ele enxergava suas construções teóricas como projetos de ordem que ficariam além da ordem social concreta e a ela julgariam.
[39]             Não caiamos no erro comum de acadêmicos de “olhar um período na história e simplesmente assumir que todos naquela sociedade estão no mesmo nível de consciência (…), e então prosseguir, fundados nesta presunção, para chegar às mais dúbias conclusões.” (Wilber, 2000, p. 156, tradução minha)
[40]                            Notem-se também as diferenças com que Cícero marca sua ciência política em relação a de Platão, no diálogo República, do primeiro, não do último. “Platão dividiu seu território, com suas moradas e riquezas, entre os cidadãos, em partes iguais, e estabeleceu sua República, tão fácil de desejar quanto difícil de possuir, e que vinha a ser menos um plano de suscetível de realização do que um modelo em que se pudessem estudar todos os expedientes da política. Por minha parte, tanto quanto possa consegui-lo, tentarei aplicar princípios idênticos, não ao vão simulacro de uma sociedade imaginária, mas à mais ampla e poderosa República, de modo que se possa assinalar a causa dos males e bens públicos.” (CÍCERO, 1973, p. 170)
[41]             O historiador Theodor Mommsen, de resto antipaticíssimo em relação a Cícero, diz que “o tratado – De Republica – leva a cabo,  num composto mestiço singular de história com filosofia, a idéia guia de que a constituição existente de Roma é em substância a organização estatal ideal buscada pelos filósofos (…)”. (MOMMSEN, tradução nossa da versão inglesa) Mommsen chama-o de oportunista, porque mudava de partidos, na realidade Cícero não tinha apego idolátrico por uma idéia. “Começou a carreira como democrata. Os sete discursos contra o governador corrupto Verres ainda são libelo e defesa de reivindicações populares. A ameaça de revolução social leva-o para o “centro”; naquela época, proferiu os famosos discursos contra o anarquista Catilina. Depois, Cícero é advogado da burguesia, que se conformara com a ditadura temporária. Elabora os seus discursos mais artísticos, como Pro Milone; fala, perante ouvidos cultos, contra os demagogos violentos da rua. Mas quando a ditadura se alia aos democratas para estabelecer o totalitarismo, então o intelectual Cícero lança-se na oposição corajosa das quatorze Filípicas contra Marco Antônio. Caiu como vítima de suas convicções pouco coerentes, mas sempre honestas. (CARPEAUX, 1959, p. 113) A série Roma, exibida pelo canal HBO, também pintou Cícero como um covarde oportunista. Resta perguntar a seu roteirista se estaria disposto a morrer em defesa da República, ao invés de se aliar a Marco Antônio ou Otávio Augusto. Cumpre aqui fazer uma digressão, que Carpeaux instigou: ser coerente nada significa, bom é querer fazer o bem, apesar de si mesmo. Juscelino Kubitschek disse certa feita: “Costumo voltar atrás, sim. Não tenho compromisso com o erro.” Franco ou não, tem toda razão. Coerência só com o bem e a verdade.
[42]             Trata-se de visão pueril o saudosismo romântico pelo Iluminismo e a Revolução Francesa. Gustavo Binenbojm desmonta o equívoco de considerar a Revolução como período de maravilhas jurídicas: “A associação da gênese do direito administrativo ao advento do Estado de direito e do princípio da separação de poderes na França pós-revolucionária caracteriza erro histórico e reprodução acrítica de um discurso de embotamento da realidade repetido por sucessivas gerações, constituindo aquilo que Paulo Otero denominou ilusão garantística da gênese. O surgimento do direito administrativo, e de suas categorias jurídicas peculiares (supremacia do interesse público, prerrogativas da Administração, discricionariedade, insindicabilidade do mérito administrativo, dentre outras), representou antes uma forma de reprodução e sobrevivência das práticas administrativas do Antigo Regime que a sua superação. A juridicização embrionária da Administração Pública não logrou subordiná-la ao direito; ao revés, serviu-lhe apenas de revestimento e aparato retórico para sua perpetuação fora da esfera de controle dos cidadãos.” (BINENBOJM, 2006, p. 11)
[43]             Tradução nossa.
[44] Esquecemos também que a oposição sujeito-objeto esconde a unidade funcional de uma relação entre um ser que emite uma informação e outro (ou o mesmo) que a recebe. O objeto se jecta ante o sujeito. Alguns pensadores falam de sujeitos que não conseguem apreender objetos. Mas os objetos, lembrava Olavo de Carvalho, também não conseguem se mostrar a eles. Uma situação interessante dessa relação que tenta se desenvolver com dificuldades é a narrada pelo Conselheiro Divino de Uversa, autor do doc. 19 do Livro de Urântia. Ele está desconfortável por sentir a presença de Espíritos Inspirados da Trindade enquanto escreve a seu respeito, sem entender, no entanto, o que eles estariam fazendo: “I do not believe the Inspired Trinity Spirits are playing hide and seek with me. They are probably trying to disclose themselves to me as I am to communicate with them; our difficulties and limitations must be mutual and inherent.”
[45] Traduz-se: “A prudência, de fato, ditará que governos há muito tempo estabelecidos não devem ser mudados em virtude de razões menores e transitórias; neste sentido toda experiência tem mostrado que a humanidade está mais disposta a padecer, enquanto os males são suportáveis, do que vindicar-se abolindo as formas a que estão acostumadas.”
[46] Ou seja, ele considera que não agiu com pecado, porque não quis, deliberadamente, fazer o mal.
[47]             Novamente o amigo questionou-me sobre a falta de uma explanação mais detalhada sobre a ordem e a desordem. Perguntou-me ele: “Existe alguma sociedade que possa ser entendida como plenamente desorganizada? Em relação a quê se pode falar de ordem?” E ainda: “Finalmente, essas considerações me levam ainda a outra questão: qual deve ser o alcance dessa ordem intentada pela lei? Ela deve somente interferir nas ações humanas ou também na vida privada, nos costumes, hábitos, pensamentos e gostos. Para citar um exemplo: o calendário é uma maneira de organizar os dias, mas as leis organizam exatamente que parte da sociedade e das relações humanas? Entende o quão amplo e infrutífero acaba sendo dizer que as leis são uma forma de buscar a ordem social?” Agradeço-lhe o fato de haver lido a obra bem como ter se disposto a comentá-la. Seu questionamento vem ao encontro do meu próprio desconforto com uma aparente falta de precisão de Voegelin, que vale comumente aos filósofos a pecha de que “andam nas nuvens”. Quem houver lido a obra anterior, da qual essa é a continuação, poderá ter tido a impressão de que ao tentarmos teorizar sobre o direito esquecemos da sua bússola prática, a norma positiva. Primeiro, entretanto, discutamos sobre os conceitos de ordem e desordem. De saída, servir-nos-á o verbete ordem no dicionário de Mário Ferreira dos Santos: “ORDEM – a) A idéia de ordem implica em seu logos quatro elementos essenciais: 1) a prioridade e a posterioridade; 2) distinção dos termos elementares; 3) origem; 4) o logos (razão). Na ordem há um início e um fim, pois para haver ordem deve haver um começo e uma meta. Implica multiplicidade de elementos, que mantém relação entre si, e segundo o logos dessa relação são eles dispostos. Ordem é, assim, a disposição de múltiplas coisas homogêneas ou não, fundada em certas relações, nas quais estão seriadas, segundo um logos. Podem os elementos ordenados pertencerem à mesma espécie ou a espécies diferentes e até várias; podem as relações serem aparentes ou constantes, simples ou complexas, mas há sempre uma razão a priori e uma a posteriori, uma origem, e distinguese, por sua vez, do que não está nela incluído ou ao que ela não pertence, segundo a razão em que é visualizada. Assim o que é ordenado, segundo uma razão, pode ser desordenado segundo outra. Surge, por isso, no exame do tema da ordem, um tema metafísico, porque a desordem é apenas a visualização dos fatos não dispostos, segundo uma ordem, uma relação das partes com o todo. A ordem sempre diz respeito ao princípio, às origem de onde ela surge, que é a normal, em suma, que subordina afinal os seus elementos. No universo, a desordem de uma tempestade é relativa à razão da ordem por nós concebida, porque fisicamente é obediente a uma ordem. Desse modo há uma pergunta de caráter metafísico: não está no universo tudo ordenado? Mas ordenado segundo ordens que nem sempre captamos? A desordem é apenas relativa à ordem considerada. Todas as coisas estão ordenadas e desordenadas. Ordenadas segundo a disposição subordinada à normal dada por um princípio, e desordenadas se considerarmos segundo outro princípio ordenador. Desse modo pode-se falar em tantas ordens quantas são as relações de disposição e de subordinação que podemos conceber. Há ordem ontológica, cronológica, axiológica, lógica, espacial, psicológica, matemática, cósmica, jurídica, moral, ética, econômica, política, etc., e também nas subclasses em que se pode examinar e considerar todo o acontecer.” (SANTOS, Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais, p. 1078) Um projeto de ordem, enquanto projeto, é por natureza criativo, ele precisa articular a sociedade, adaptando-se às suas circunstâncias e necessidades. Uma vez vitorioso, chega a sua fase de estabilização. Aqui entra o direito. Na feliz metáfora de Rosenstock-Huessy, ele é o gelo, a água que parou de fluir e solidificou-se, como o rio que congela no inverno e permite que as pessoas o atravessem agora tranquilamente. O direito, portanto, é a fase estabilizadora da construção da ordem. Meu amigo desgosta do fato de que a expressão ‘construção da ordem’ seja muito genérica. Mas a generalidade é apropriada à questão. Veja, o calendário que organiza os dias, é ele próprio uma lei da sociedade. Os hábitos matrimoniais tornam-se jurídicos com o passar o tempo, etc. Claro que não são todos os gostos, hábitos, gestos, que se tornarão jurídicos. Alguns não precisam sê-lo porque a precisão jurídica é desnecessária. Que haja assentos reservados pera anciãos no metrô é um primeiro passo para a jurisdicialização de uma prática de cortesia. Faltaria ainda o uso da força, em caso de descumprimento, para que essa norma fosse plenamente jurídica. Algumas práticas sociais, ir à Igreja, por exemplo, não são normas jurídicas. Uma pessoa pode escolher ou não ir à Igreja. Mas o próprio fato de essa questão não ser jurídica foi contemplado pelo direito no primo inter paribus princípio da legalidade: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo se não em virtude de lei.” Ou seja, juridicamente, as pessoas podem escolher ir ou não à Igreja porque a legislação não obriga a uma ou outra conduta. E isto é uma construção da ordem social. Ou um relapso de quem a construiu, as chamadas ‘brechas legais’. Parece óbvio que ir à Igreja não seja uma obrigação legal, mas já houve época em que alguém que faltasse ao serviço dominical sem uma boa desculpa seria punido pelo direito canônico, o qual teve, dentro de seu âmbito, a força que o direito civil tem hoje. A reforma protestante, aliás, teve o condão de arrancar do direito canônico sua exigibilidade secular. Na pólis grega, Voegelin diz que “a Doxa é a fonte da desordem; a renúncia à Doxa é a condição da ordem justa, a Eunomia. Quando o homem supera a obsessão de sua Doxa e amolda sua ação à medida invisível dos deuses, então a vida em comunidade se torna possível. Esta é a descoberta de Sólon” (VOEGELIN, 2009, p. 272), que “ama apaixonadamente a magnificência e a exuberância da vida, mas a experimenta como uma dádiva dos deuses, não como uma meta a ser realizada por meios tortos contrários à ordem divina. Através de abertura para a transcendência, a paixão a vida é revelada como a Doxa que tem de ser refreada pelo bem da ordem.” (VOEGELIN, 2009, p. 272) A Doxa é o palavreado opinativo, sem o cuidado humilde que o assunto possa pedir, e que não tem, portanto, valor científico. Platão dividiu em
[48]             Diz Thoreau no seu trabalho Resistance to Civil Government: “I have never declined paying the highway tax, because I am as desirous of being a good neighbor as I am of being a bad subject; and, as for supporting schools, I am doing my part to educate my fellow ​countrymen now. It is for no particular item in the tax-​bill that I refuse to pay it. I simply wish to refuse allegiance to the State, to withdraw and stand aloof from it effectually. I do not care to trace the course of my dollar, if I could, till it buys a man, or a musket to shoot one with, — the dollar is innocent, — but I am concerned to trace the effects of my allegiance. In fact, I quietly declare war with the State, after my fashion, though I will still make use and get what advantages of her I can, as is usual in such cases.” (Thoreau, 1849, ¶36)
[49] Pelo qual as cortes federais julgariam a validade de um ato federal ou estadual contestado em face da Constituição Federal, reputada como “the fundamental and paramount law of the nation.” (John Marshall)
[50] Consultar, a respeito, CHERNOW, 2004, cap. 40.
[51]             Conforme veremos logo em seguida, Maimônides refere-se também, “remove every excess”, à necessidade do direito para podar a natureza impessoal do homem.
[52]             Diz Sergio Cotta: “En cuarto lugar, observamos que el hombre es consciente de sus limitaciones y las experimenta como una carencia de aquello que podría llegar a ser. Por tanto, el hombre es consciente de su propia imperfección o indigencia. (…) Se ha dicho que el elemento más específicamente humano es la conciencia de su propia condición imperfecta o indigente. ¿Cómo se explica esa conciencia, qué hace que surja?. En el siglo pasado, el danés Kierkegaard demostró con un análisis cómo el hombre es un ser dual: finito-infinito, contingente-eterno, relativo-absoluto. Los hombres son, efectivamente capaces de pensar lo infinito, lo eterno o lo absoluto. Pero justamente por esa capacidad, los hombres están en disposición de comprender que en sus posibilidades personales de realización, son, en cambio, limitados. El hombre, decía Pascal, no es ángel ni bestia.” (Cotta, Sergio. ¿Qué es el derecho?, resúmen del libro hecho por Manuel Piñeiro Fernández)
[53]                            Sobre o tema de educar a vontade, ver o livro clássico, infelizmente esquecido, A Educação da Vontade, de Jules Payot.
[54]             Às leis eternas de Mário Ferreira dos Santos pode-se traçar um paralelo inclusive com a chamada crise de paradigmas. Vejamos as palavras de Gustavo Binenbojm, na esteira da obra de Thomas Kuhn: “(…) Em um certo sentido, os paradigmas exercem uma eficácia bloqueadora, subtraindo determinados pressupostos à dúvida, cuja legitimidade é simplesmente aceita como premissa. Ocorre que, nessa investigação interna ao paradigma, algumas perguntas não são satisfatoriamente respondidas, enquanto outras recebem soluções anômalas. A sucessão de anomalias e questões não respondidas pode conduzir a uma crise do paradigma vigente, dando azo ao surgimento de teorias revolucionárias, que propõem a substituição do objeto e da forma como as perguntas devem ser feitas. Em tais momentos de crise, o que se propõe não são formas de aprimoramento ou harmonização do paradigma face a casos problemáticos, mas, ao revés, a própria revisão das premissas daquele modelo científico. Se o paradigma desafiante logra solidificar-se, as perguntas e objetos antigos são abandonados, passando-se a uma nova concepção do que seja fazer ciência. Nestas circunstâncias, portanto, terá havido uma mudança de paradigma. (…) (…) há momentos específicos em que, dado o acúmulo de anomalias não solucionadas dentro do paradigma, surgem teorias subversivas do próprio paradigma, que põem em xeque a sua legitimidade e propõem novas formas de conceber o objeto e a própria metodologia de trabalho da ciência jurídica. O que tradicionalmente era aceito como premissa passa ao centro do debate científico, travando-se uma batalha teórica entre desafiantes e desafiados. Nestas circunstâncias, predomina o enfoque zetético do direito: trata-se de um   momento de crise de paradigmas. (BINENBOJM, 2006, p. 27-29) Ora, de que trata o texto acima se não de uma aplicação à ciência, e em particular à ciência do direito, das leis eternas? “A assunção – evolução superior ou transmutação eidética – só pode dar-se após o esgotamento das possibilidades atualizadas dos opostos que constituem a unidade. (…) Os opostos, numa unidade, atualizam as suas possibilidades nas proporções que já mencioanamos. Atualizadas algumas possibilidades prometéicas, muitas que não foram atualizadas [se tornam] epimetéicas, não tendo mais oportunidade de atualizações futuras. A unidade em evolução encontra, assim, um término de suas possibilidades atualizadas. (…) Só o rompimento da lei de proporcionalidade intrínseca do todo é que lhe permitiria então desabrochar em existencializações externas à imanência da unidade. Como não há niilificação absoluta, são potências latentes à espera de uma ruptura da unidade formal que lhes abre naturalmente as portas para que se atualizem. (…) A corrupção, pois, é o rompimento da lei de proporcionalidade intrínseca, quando o ser deixa de ser o que é. Há, assim, uma transmutação eidética. Um novo ciclo se abre para a unidade. Há um salto evolutivo e o surgimento de uma nova forma. (…) A harmônica oposição dos elementos intrínsecos determina a evolução normal do ser. O rompimento da harmonia nas oposições intrínsecas põe em risco a evolução do ente e o torna susceptível à assunção por outra forma. A assunção realiza-se quando o ciclo harmônico das oposições intrínsecas é rompido em sua tensão. Quer dizer, a harmônica oposição dos elementos intrínsecos determina a evolução normal de um ser, enquanto predominar a harmonia nesta oposição dos elementos intrínsecos, como já estudamos. Qualquer perturbação, ou seja, qualquer quebra na sua tensão, vai tornando este ser suscetível de ser assumido por outra forma.” (SANTOS, 2001, p. 94-95, 119)
[55]             Porém quando a impessoalidade humana não tende a convulsionar a ordem social humana, ou, melhor dizendo, quando punir a injustiça traz mais riscos do que não puní-la, é melhor nada fazer. Ensina-o Monteiro Lobato: “—Mas os crimes não devem ficar impunes. Diz o brocardo: fiat justitia pereat mundus. Faça-se justiça ainda que pereça o mundo. — Há uma ideia mais inteligente que a desse estúpido e cruel brocardo e nessa ideia se assenta o moderno conceito de justiça. É a substituição do pereat pelo floreat. Faça-se a justiça para que prospere o mundo. Se de um ato de justiça redundar mal maior, essa justiça é injusta.” (LOBATO, 1959, p. 104)
[56]             Assim Kelsen expressa sua norma fundamental. Conferir KELSEN, 1999, p. 142. A norma fundamental kelseniana equivale, na seara jurídica, embora ele não fosse concordar com isso, à necessidade incondicionada do ser, que precede todo pensamento e não tem fundamento – porque ela é o fundamento –, a qual Kant chamou de o “verdadeiro abismo da razão humana” (SCHELLING, p. 189), justamente porque é inconcebível pela razão humana, se por razão entender-se aqui a faculdade de apreender conceitos. A primeira fonte e centro precisa despojar-se de sua perfeição absoluta para iniciar o que existe em torno de si. A norma fundamental precisa ser pressuposta para que todo o processo silogístico posterior de validade das normas faça sentido.
[57] Conferir HUSSERL, p. 37.
[58]             No trabalho anterior, do qual este é a continuação, escrevi a seguinte nota neste mesmo ponto: “Compreende-se portanto por que o Senhor foi contra a nomeação de um rei para o povo de Israel. A nação de Israel, que pediu ao profeta Samuel um rei, foi atendida mesmo contra a vontade do próprio Senhor. Dirigindo-se a Samuel, o Senhor disse: “Não é a ti que eles rejeitam, mas a mim, pois já não querem que eu reine sobre eles.(…) Atende-os, agora(…)” (Bíblia, 2006, I Samuel, 8, 7-9, p. 312). Ou seja, se Israel achava que teria uma fonte melhor de normatividade ontológica por adicionar uma instância de poder, enganou-se redondamente, como a própria história dos reis mostrará, os quais eram tão falhos quanto qualquer juiz, que formavam a classe de governantes antes da instauração da monarquia.” O Livro de Urântia explicita: “Com um exército de pouco mais de três mil homens, ele (Saul) derrotou o o inimigo e foi essa façanha que levou todas as tribos das colinas a fazê-lo rei. (…) Imediatamente depois da derrota dos amonitas, Saul foi feito rei por eleição popular de suas tropas. Nenhum sacerdote ou profeta participou desse acontecimento. Mas os sacerdotes, mais tarde, registraram nos arquivos que Saul foi coroado rei pelo profeta Samuel, cumprindo instruções divinas. E fizeram isso no intuito de estabelecer uma “linha divina de descendência” para a realeza judaita de Davi.” (Livro de    Urântia, 2007, doc. 97, p. 1072) Trata-se de revelação importante, haja vista que o ainda presente hábito da Cristandade em que o sacerdote coroa o rei deve-se à passagem bíblica em que o profeta Samuel investe Saul com os poderes reais. Conquanto a interpretação histórica não seja mais válida, portanto, continua valendo como exegese bíblica. Os escribas bíblicos desejavam mostrar que a eleição de um rei para Israel ia de encontro aos interesses da nação.
[59]             É lenda a história de uma sociedade governada diretamente por Deus, mencionada por Platão no diálogo O Político. “A “idade de ouro”é um mito, mas o Éden foi um fato; e a civilização do Jardim foi de fato arruinada.” (Livro de Urântia, 2007, doc. 74, p. 838) Descubra como lendo os documentos que tratam da estadia de Adão e Eva entre nós.
[60] Uma característica do direito é que ele incorpora mudanças sociais sutis que passam longe de uma construção deliberada da ordem. O valor que os juízes deram historicamente aos costumes o ilustra. Hoje, porém, o juiz se vale menos do costume do que do precedente. E o valor dado ao precedente foi, ele sim, um projeto consciente da revolução puritana britânica. Atualização de 03/06/2013: O próprio Jesus recorreu a precedentes para driblar armadilhas de fariseus e afirmar a liberdade: “Vós sois de fato zelosos com a lei, e fazeis bem em lembrar o dia de sabbath para preservá-lo santificado. Todavia, nunca lestes nas escrituras que, num dia em que Davi estava faminto, ele e aqueles que o acompanhavam entraram na casa de Deus e comeram o pão das oferendas, das quais não seria legal que ninguém comesse, a não ser os sacerdotes? E Davi também deu desse pão àqueles que estavam com ele. E não lestes na vossa lei, que temos o direito de fazer muitas coisas que são imprescindíveis, no sábado? E não vos verei, antes do dia terminar, comendo aquilo que trouxestes para as necessidades desse dia? Meus bons homens fazeis bem em serdes zelosos com o dia de sábado, mas faríeis melhor se guardásseis a saúde e o bem-estar dos vossos semelhantes. Eu declaro que o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. E, se estais presentes aqui conosco, para guardar as minhas palavras, então eu proclamarei abertamente que o Filho do Homem é senhor até mesmo do sábado”. (Livro de Urântia, doc. 147, p. 1654)
[61]             O primeiro livro da Bíblia, Gênesis, contém a narrativa mito-poética da criação do mundo. Ao longo desse livro, distinguem-se também a história de homens que seguiam os passos do Senhor: “Noé obedeceu e fez tudo o que o Senhor lhe tinha ordenado” (Gn, 6, 22) ou “Abraão partiu como o Senhor lhe havia dito” (Gn, 12, 4). Já a partir do segundo livro, o Êxodo, o Senhor não mais ordena aos homens de modo pessoal apenas, porém lança as bases da ordem da sociedade judaica, sobretudo pela revelação dos Dez Mandamentos. De uma relação pessoal com homens determinados, devotos e confiantes no império do Senhor, a relação se estende a todo o povo israelita. “Deus disse a Moisés: “Eu sou o Senhor. Apareci a Abraão, a Isaac e a Jacó como Deus todo-poderoso, mas não me dei a conhecer a eles pelo meu nome de Javé. Eu me comprometi com eles a lhes dar a terra de Canaã, a terra onde levaram uma vida errante e habitaram como estrangeiros. Ouvi o clamor dos israelitas oprimidos pelos egípcios, e lembrei-me da aliança. Por isso, dize aos                 israelitas: eu sou o Senhor; vou libertar-vos do jugo dos egípcios e livrar-vos de sua servidão.(…)    Tomar-vos-ei para meu povo e serei o vosso Deus(…).” (Ex, 6, 2-7) No contexto da escravidão junto aos egípcios, o Senhor reaviva a aliança que fizera com os homens devotos do livro anterior e a estende para todo o povo. O “povo escolhido” carregará uma série de responsabilidades. A relação que era pessoal agora passa a ter ao mesmo tempo um conteúdo impessoal, pois nem todos os membros do povo de Israel confiam plenamente no Senhor: “Toda a assembléia dos israelitas pôs-se a murmurar contra Moisés e Aarão no deserto. Disseram-lhes: “Oxalá tivéssemos sido mortos pela mão do Senhor no Egito, quando nos assentávamos diante das panelas de carne e tínhamos pão em abundância.”” (Ex, 16, 2-3) Por isso a instituição de normas de conduta é necessária e, portanto, adotada. São os Dez Mandamentos (Gn, 20) e outras leis (Gn, 21-23). Além das normas impessoais de conduta, haverá sempre o profeta, intermediário entre o Senhor e o povo de Israel, o qual carrega a mensagem do Senhor para o povo e o incita a continuar nos Seus passos, ou, caso o povo se lhes tenha desviado, a retomá-los. Voegelin tem um livro para falar sobre a revelação ao povo de Israel, trata-se do primeiro dos cinco volumes de sua obra magna, Ordem e História.
[62]             A especulação racional a respeito da inspiração profética foi feita por filósofos judeus como Filo de Alexandria, que viveu no mesmo período que Jesus de Nazaré, e Maimônides, durante a Idade Média. Neste sentido, veja-se a obra deste segundo, Guia dos Perplexos, parte 2, capítulos 32 a 48. Aprofunde-se no tema lendo o capítulo XXIII.
[63]             No caso dos gregos antigos, os atenienses em particular, a referência a uma ordem verdadeira, para além da ordem empírica, foi dada também pelo teatro. As apresentações teatrais em Atenas eram subvencionadas pelo estado e por cidadãos ricos, espécies de mecenas avant la lettre, chamados coregos. “A tragédia grega”, dirá Otto Maria Carpeaux, “era instituição do estado democrático, e a participação nela era de certo modo um direito e um dever constitucionais.” (CARPEAUX, 1959, p. 71) Trata-se de uma evolução civilizacional que o próprio estado, a pólis grega, bancasse produções artísticas, as quais, muitas vezes, estabeleciam verdades que se sobressaíam à ordem que nela vigia. “O verdadeiro fim do teatro grego – assim reza a tese sociológica – era a sanção duma modificação da ordem social por meio de uma reinterpretação do mito.” (CARPEAUX, 1959, p. 72) A peça Antígona é um exemplo. “Na trilogia tebana de Sófocles, na peça Antígona, a personagem de mesmo nome é filha do rei amaldiçoado Édipo, que por engano assassinara seu próprio pai e casara com a mãe. Antígona é filha dessa união, bem como seu irmão Polinices. Depois que Édipo descobre a tragédia que recaía sobre si, Polinices vai embora da cidade de Tebas e encontra refúgio na cidade inimiga de Argos.                 Na uerra entre as duas cidades, Polinices morre, bem como seu irmão Eteocles, o qual permancera em Tebas. Contrariando um decreto do rei Creon, que mandara que o corpo de Polinices fosse deixado insepulto para os cães e pássaros comerem, Antígona enterra seu irmão, honrando-o com as devidas preces aos deuses. Furioso, o rei Creon exige que Antígona seja punida. Antígona fala em sua defesa, respondendo a Creon: Creon — E mesmo assim você ousou quebrar essas mesmas leis? Antígona — Sim. Zeus não anunciou essas leis para mim. E a Justiça que vive nos deuses abaixo não enviou tais leis para os homens. Não considerei qualquer coisa que você tenha proclamado forte o bastante para deixar que um mortal sobreponha-se aos deuses e suas leis não escritas e imutáveis. Elas não são justas para hoje ou ontem, mas existem sempre, e ninguém sabe onde apareceram pela primeira vez. Então não me permiti que um medo de alguma vontade humana levasse a minha punição entre os deuses. Sei muito bem que vou morrer- como não iria? -não faz diferença o que você decreta. E se eu tenho que morrer antes do meu tempo, bom, eu conto isso como um ganho. Quando alguém deve viver do jeito que eu vivo, cercada por tantas coisas más, como pode ela não achar um benefício na morte? De modo que para mim encontrar esse destino não me trará qualquer medo. Mas se eu permitisse que o próprio filho morto de minha mãe permanecesse ali, um corpo insepulto, então eu me sentiria desgraçada. O que acontece aqui não me atinge de modo algum. Se você crê que o que estou fazendo agora é estúpido, talvez eu esteja sendo acusada com insensatez por alguém que é um insensato.” (LOURENÇO, Daniel. Noção de justiça em Ésquilo e Sófocles. Disponível em: <http://www.daniellourenco.com/2008/03/noo-de-justia-em-squilo-e-sfocles.html>. Acesso em 07/07/2009). [64] Interessante observar que, na civilização islâmica, praticamente todo o conjunto do direito está dado ou no seu livro sagrado, o Corão, ou na Sunna, os atos e ditos de seu profeta Maomé. A filosofia não pretende ser fonte autorizada para a organização da vida civil naquela civilização, salvo como fonte subsidiária à exegese (Ijtihâd) do Corão, a qual constitui o principal trabalho do jurista.
[65] Guilherme de Ockham com a palavra (calma, tomistas, não se assustem, nada que ver com discussão sobre universais): “(…) To understand this they say that it should be known that the word “church” is taken ambiguously in different written works. For sometimes it is taken for the physical place set aside for the divine services, sometimes for some particular body of clerics, sometimes for the whole body of all clerics, sometimes for some particular gathering of the clergy and people , sometimes for the whole gathering of believers living together in this mortal life, and sometimes the word “church” includes not only the whole gathering of catholics who are alive but also those believers who are dead.” (OCKHAM, Dialogus, part 1, book 1, chapter 4)
[66] Note-se que no planeta vizinho ao nosso de que o LU fala (documento 72), não há instituições religiosas como as igrejas. Nem por isso eles estão espiritualmente defasados.
[67] Conferir LU, doc. 72, p. 811.
[68] Veja, falo de conceitos, não de arroubos metafóricos, genuínos e válidos.
[69] Jesus não fundou a Igreja, procurou fomentá-la enquanto “melhor expoente existente do trabalho da sua vida na Terra”. Conferir LU, 2007, doc. 195, p. 2085.
[70] Se alguém não sabe, esse é o credo democrático por excelência, usado por Abraham Lincoln no discurso de Gettysburg.
[71] Os discursos, entre os maiores já proferidos no Brasil — goste-se-lhes ou não –, de Ibrahim Nobre, tribuno do movimento de 1932, também são recheados de referências bíblicas. Ver GALVÃO, 1960.
[72]             Grandes homens em geral, e os políticos em particular, podem servir de referência moral para uma melhor organização da sociedade. Não sabemos exatamente o que Voegelin entendia como a autoridade do poder, nem intentaremos definí-la aqui. Além do próprio exercício do poder político, porém, a autoridade do poder político pode também servir como símbolo para a organização da sociedade, e assim tanto para o bem como para o mal. Entendemos que a reabilitação relativa da figura de Stálin na Rússia é ruim para sua ordem. Ao revés, como exemplo positivo, Monteiro Lobato nos conta que: “– (…) Só aqui (no Lincoln Memorial) sentimos Lincoln e só aqui se torna compreensível a força com que esse homem, hoje puro símbolo, domina 120 milhões de criaturas. Para mim Lincoln é apenas o signo da Força Moral. Este monumento, menos ao homem que ele foi, ao Presidente, ao libertador dos escravos, homenageia em mármore a força das forças – a Força Moral.” (LOBATO, 1959, p. 36) “A imaginação moral” e a “imaginação criativa” para a construção da ordem podem beber no símbolo de “Washington e Lincoln! A América aglomerou-se e consolidou-se por mãos deles – e obra tão sólida fizeram que cada vez mais é esse cimento o que cimenta, e a diretriz que traçaram é a grande diretriz.” (LOBATO, 1959, p. 42)
[73]             Não só os movimentos gnóstico-revolucionários fizeram essa fusão. Quando o rei Henrique VIII, da Inglaterra, unilateralmente renegou a autoridade papal e criou a sua própria Igreja, ele estava fazendo exatamente o mesmo, ou seja, acumulou na figura do monarca a autoridade do poder bem como a autoridade normativa da revelação, como chefe da organização voltada a explicar o conteúdo da revelação cristã para os ingleses. A diferença é que ele não se arrogou também a autoridade de filósofo.
[74] Comentando os seguintes versos de Vinícius: “Fico ali respirando o cheiro bom do estrume / Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme” (Soneto de intimidade).
[75] Conferir MARIANI, 2009
[76] Madura aqui não bastará ser adulta. Há atores de novelas que interpretavam vilões os quais relatam terem sido agredidos na rua.  Não são só crianças que não sabem diferenciar a ficção da realidade.
[77]             Sobre o tema dos poetas na República, conferir MOTTA, 2010, pp. 81-92.
[78]             Não se creia que a academia fechada por Justiniano fosse a mesma inaugurada por Platão. Esta foi destruída em 86 AC, quando Sulla sitiou a cidade de Atenas durante a primeira guerra mitridática. Filo de Larissa, o último escolarca da Academia, o equivalente a seu reitor, transferiu-se para Roma, onde deu palestras assistidas pelo jovem e entusiasmado Cícero.
[79]             “As translationes studiorum são movimentos históricos e socioculturais de translação de manuscritos, conhecimentos, filosofia e ciência” (COÊLHO, 2008) de um lugar para outro.
[80]             Ver O’Leary, Chapter V, 5.
[81]             Torcemos com Wilber pela eminência social do domínio transpessoal sobre o mítico, como ele os entende. É ótimo que os arquétipos tenham uma conotação mais marcante de sabedoria do que de mero antropomorfismo. Melhor, entretanto, é quando ambas as conotações podem ser unidas, como na figura do Pai Divino, que, muito mais do que poderia um mito – novamente conforme a terminologia wilberiana –, encerra uma realidade em si simbólica, como tal acessível ao homem em qualquer fase do desenvolvimento de sua personalidade. “Quando tudo estiver dito e feito,” aqui o gran finale do Livro de Urântia, “a idéia de um Pai será ainda o conceito humano mais elevado de Deus.” (LIVRO DE URÂNTIA, doc. 196, 3, p. 2097) O homem agradece pela intuição simples carregada de sabedoria e amor. Sobre os significados distintos de arquétipo na filosofia clássica e na psicologia de Jung, conferir WILBER, 2001, 217-219.
[82]             Mais do que isso: “O “sentido mitológico”, um dos fatores da inteligência humana, corresponde a toda uma dimensão     da realidade, a qual, sem esse sentido, manter-se-á inacessível.” (PALLIS, 2003, tradução de Miguel    Conceiçâo)
[83]             Refiro-me a Hamlet, que respirou o ar podre no reino da Dinamarca.
[84]             Conferir livro III, 3, da obra De Anima.
[85]             Porque ele será imaginado, e as “imagens são, em sua maior parte, falsas”. (ARISTOTLE, On the Soul, Book 3, part 3, tradução minha). Aristóteles só errou por modéstia, as imagens são, por definição, falsas, no sentido de que são uma ficção; aquela ficção-real de que nos falou Mário Ferreira dos Santos acima, isto é, ficção com fundamento maior ou menor no real. Mesmo a imagem de um unicórnio, só conseguimos construí-la valendo-nos da imagem de entes reais.
[86] Essa falsificação é parte consciente, parte inconsciente, muito embora a própria pessoa não consiga admiti-lo, ou mesmo lembrar que em parte a quis. A lembrança da intencionalidade da falsificação só ocorrerá com a lembrança dos seus motivos. Porque então a pessoa está justificada ante sua consciência. É preciso uma misericórdia divina conosco mesmos no processo de descobrir por que agimos como agimos. A autoimposição de rigores morais excessivos ainda é um disfarce contra o autoconhecimento.  Responsabilidade é assumir (perante nós mesmos, não necessariamente perante o mundo) o que ocorre (nem mais nem menos) em virtude de nossa ação.
[87] Ecoa-me Rui Barbosa: “O Padre Manuel Bernardes pregava, numa das suas Silvas: “Bem pode haver ira, sem haver pecado: Irascimini, et nolite peccare. E às vezes poderá haver pecado, se não houver ira: porquanto a paciência, e silêncio, fomenta a negligência dos maus, e tenta a perseverança dos bons. Qui cum causa non irascitur, peccat (diz um padre); patientia enim irrationabilis vitia seminat, negligentiam nutrit, et non solum malos, sed etiam bonos invitat ad malum. Nem o irar-se nestes termos é contra a mansidão: porque esta virtude compreende dois atos: um é reprimir a ira, quando é desordenada; outro, excitá-la, quando convém. A ira se compara ao cão, que ao ladrão ladra, ao senhor festeja, ao hóspede nem festeja, nem ladra: e sempre faz o seu ofício. E assim quem se agasta nas ocasiões, e contra as pessoas, que convém agastar-se, bem pode, com tudo isso, ser verdadeiramente manso. Qui igitur (disse o Filósofo) ad quae oportet, et quibus oportet, irascitur, laudatur, esseque is mansuetus potest.” Nem toda ira, pois, é maldade; porque a ira, se, as mais das vezes, rebenta agressiva e daninha, muitas outras, oportuna e necessária, constitui o específico da cura. Ora deriva da tentação infernal, ora de inspiração religiosa. Comumente se acende em sentimentos desumanos e paixões cruéis; mas não raro flameja do amor santo e da verdadeira caridade. Quando um braveja contra o bem, que não entende, ou que o contraria, é ódio iroso, ou ira odienta. Quando verbera o escândalo, a brutalidade, ou o orgulho, não é agrestia rude, mas exaltação virtuosa; não é soberba, que explode, mas indignação que ilumina; não é raiva desaçaimada, mas correção fraterna.” (BARBOSA, 1921) O sentimento de indignação moralista que move o brasileiro contra a corrupção deve bastante, decerto, a Rui Barbosa – na continuação desse trecho transcrito da Oração aos moços ele referir-se-á especificamente à corrupção. Não o considero ruim, mas quando sobrepuja toda e qualquer discussão política pode fazer mais mal que bem. Ter que se indignar a toda hora, o tempo todo, é esquecer-se de reconhecer e desfrutar o que de bom esteja acontecendo.
[88]             Jesus não é o “cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”, imolado para pagar nossos pecados, mas, verdadeiramente, é um salvador.
[89]             “Um homem bom e nobre pode amar de um modo consumado à sua esposa, mas pode ser totalmente incapaz de passar satisfatoriamente em um exame escrito sobre a psicologia do amor marital. Outro homem, tendo pouco ou nenhum amor pela sua esposa, poderia passar nesse exame de um modo bastante aceitável. A imperfeição do discernimento daquele que ama sobre a verdadeira natureza do ser amado em nada invalida, seja a realidade, seja a sinceridade do seu amor.” (LIVRO DE URÂNTIA, doc. 103, 8, p. 1140)
[90]             Como disse Hahnemann: “The physician’s high and only mission is to restore the sick to health, to cure, as it is termed.” (HAHNEMANN) Essa primeira frase de seu Organon era a exortação ao médico para que não rechaçasse de antemão, sem conhecê-las, terapias que pudessem curar o paciente, como a da homeopatia, que Hahnemann apresentava neste estudo.
[91]             De igual modo, é difícil saber se Júlio Cesar perdoava seus adversários políticos por magnanimidade ou por estratégia. Talvez pelas duas razões. Shaftesbury elogia em César o apreço pelas artes: “Caesar (…) knew experimentally what it was to have even a Catullus his enemy; and, though lashed so often in his lampoons, continued to forgive and court him. The traitor knew the importance of this mildness. May none who have the same designs, understand so well the advantages of such a conduct! I would have required only this one defect in Ceasar’s generosity, to have been secure of his never rising to greatness, or enslaving his native country. Let him have shown a ruggedness and austerity towards free geniuses, or a neglect or contempt towards men of wit; let him have trusted to his arms, and declared against arts and letters; and he would have proved a second Marius, or a Catiline of meaner fame and character.” (Shaftesbury, 2005, p. 197-198)
[92] William Sargant, em “Luta pela mente”, disse que neuróticos são menos influenciáveis que as pessoas normais.
[93] Poderia tê-lo esperado acabar e lançado o golpe fatal. Considerações sobre se ele vai para o céu ou não porque acabou de rezar são evasivas. Mais do que isso, não lhe dizem respeito.
[94] Leiam o poema Retrato, de Antonio Machado.
[95] Rafael Falcón dirá loucamente, por exemplo, que a “a virtude quase nunca é evidente, e o vício sempre se fantasia de virtude, de modo que talvez o melhor modo de reconhecer a virtude seja a aparência excessivamente explícita de vício”.
[96]             Maimonides, parte 2, XXXII, tradução minha.
[97]             Sobre a relação do político com o rei dos deuses cite-se também Plotino: “Por certo foi por ter experimentado essa união [com o Uno] que Minos foi chamado de “companheiro de Zeus”. E foi lembrando dessa união e como imagem [reflexo, conseqüência] dela que editou suas leis, que lhe foram outorgadas pelo toque divino.” (PLOTINO, 2007, p. 135)
[98]             Também já se associou Hesíodo com os profetas hebraicos por seus lamentos contra o que ele via como ordem injusta de sua época, à qual se oporia a ordem de Zeus.
[99]             MAIMONIDES, parte 2, XLV
[100]            MAIMONIDES, parte 2, XLVII, tradução minha.
[101]            MAIMONIDES, parte 2, XLVIII, tradução minha.
[102]                            Citado por PERRY, 1977.
[103]                           Ou seja, ele fala sobre o que concerne a quem lhe assoprou a profecia.
[104] Conferir MAIMONIDES, parte 2, chapter XXXVI
[105] Conferir SANTOS, Sabedoria da Unidade, p. 165. Continua Mário Ferreira: “É mister despojar esse objetos de sua materialidade, porque esta não pode penetrar no conhecimento intelectivo, já que a assimilação que se dá não é física, nem é biológica. Não há incorporação da coisa.”
[106] Se o intelecto é uma função da psique, ou uma substância separada e comum a todos os homens, já foi razoavelmente discutido por Tomás de Aquino no opúsculo De Unitate Intellectus, em favor da primeira opção. Não obstante, “há deveras um princípio de iluminação, a saber, uma certa substância separada: Deus, para os católicos, ou a inteligência última, para Avicena.” (AQUINAS, chapter 5, tradução minha) Este princípio é a mente cósmica.
[107]            Diz ele: “Podemos, portanto, supor que os sonhos recebem sua forma em cada ser humano mediante a ação de duas forças psíquicas (ou podemos descrevê-las como correntes ou sistemas) e que uma dessas forças constrói o desejo que é expresso pelo sonho, enquanto a outra exerce uma censura  sobre esse desejo onírico e, pelo emprego dessa censura, acarreta forçosamente uma distorção na expressão do desejo.” (FREUD, p. 131)
[108]            Vale a pena ler todo o trecho a respeito dos sonhos: “As experiências humanas no sonho, aquela sucessão desconectada e desordenada na mente adormecida, não coordenada, apresentam-se como uma prova adequada do fracasso do Ajustador na harmonização e na associação dos fatores divergentes dentro da mente humana. Os Ajustadores simplesmente não podem, em um único período de vida, arbitrariamente, coordenar e sincronizar dois tipos tão dessemelhantes e diversos de pensamento, tais como o humano e o divino. Quando conseguem fazê-lo, como algumas vezes o fizeram, essas almas são transladadas diretamente para os mundos das mansões, sem a necessidade de passar através da experiência da morte. Durante o período de sono, o Ajustador tenta realizar apenas aquilo que a vontade da personalidade residida já aprovou, prévia e totalmente, por meio de decisões e escolhas, feitas todas em períodos de consciência plenamente desperta, e que, conseqüentemente, já se hajam alojado nos reinos da supramente, nesta que é o domínio da inter-relação entre o humano e o divino. Enquanto os seus hospedeiros mortais estão adormecidos, os Ajustadores tentam registrar as suas criações nos níveis mais elevados da mente material; e alguns, dentre os vossos sonhos grotescos, indicam o fracasso deles em estabelecer um contato eficiente. Os absurdos da vida nos sonhos não apenas atestam a pressão de determinadas emoções não exprimidas, mas também testemunham as distorções horríveis das representações dos conceitos espirituais, apresentadas pelos Ajustadores. As vossas próprias paixões, os impulsos e outras tendências inatas transladam-se para a imagem do sonho e substituem os seus desejos ainda inexprimidos apresentando-os como se fossem as mensagens divinas que os residentes tanto se esforçam para colocar nos registros psíquicos, durante a fase inconsciente do sono. É extremamente perigoso postular qualquer coisa, quanto à participação do Ajustador, no conteúdo da vida nos sonhos. Os Ajustadores trabalham, sim, durante o sono; mas as vossas experiências no sonho, em geral, são fenômenos puramente fisiológicos e psicológicos. Da mesma forma, é arriscado tentar diferençar o registro dos conceitos dos Ajustadores, das recepções mais ou menos contínuas e conscientes, daquilo que é ditado a partir da consciência mortal. Tais problemas terão de ser solucionados por meio da discriminação individual e por meio da decisão pessoal. De qualquer modo é melhor, para o ser humano, errar, considerando uma expressão não como vinda do Ajustador, acreditando que se trata de uma experiência puramente humana, do que se precipitar no erro da exaltação de uma reação da mente mortal, considerando-a como sendo da esfera da dignidade divina. Lembrai-vos que a influência de um Ajustador do Pensamento é, em grande parte, se bem que não integralmente, uma experiência supraconsciente.”(LIVRO DE URÂNTIA, 2007, doc. 110, p. 1208)
[109]            Conferir MAIMONIDES, parte 2, XLV, tradução minha.
[110]            Conferir AVICENNA, Book ten, chapter 1, p. 359.
[111]            Essa é uma preocupação que nós também, leitor, procuramos ter ao lhe falar do Livro de Urântia.
[112]            Na lição IX da Filosofia da Revelação.
[113]            Ambas religiões derivam de um processo real entre o homem e Deus.
[114]            Avicena aponta que o profeta não deve entrar em discussões doutrinais sobre Deus. Aumentar-se-ia muito a tarefa dos crentes, confundindo sua religião, diz ele. Conferir AVICENNA, Book ten, chaper 2, p. 366. Não é exatamente o caso de Moisés; se o povo estivesse pronto, ele lhes revelaria um Deus melhor do que o que revelou, independente das discussões de cunho filosófico sobre os atributos divinos. Mas o importante é que Avicena está ciente de que o profeta deve respeitar a receptividade do povo à mensagem. “Não há porém, problema algum, se as palavras do legislador”, isto é, do profeta, “contenham símbolos e signos que possam estimular aqueles naturalmente dispostos a reflexões teóricas a buscar investigações filosóficas.” (AVICENNA, Book ten, chaper 2, p. 366, tradução minha)
[115] Quão desconfortável não foi para Moisés revelar um Deus tão abaixo de sua real personalidade! Mas antes a migalha do que nada. George MacDonald, o escritor britânico de histórias fantásticas, tinha perfeita noção disso: “How should the Hebrews be other than terrified at that which was opposed to all they knew of themselves, beings judging it good to honor a golden calf? Such as they were, they did well to be afraid.  …  Fear is nobler than sensuality. Fear is better than no God, better than a god made with hands. … The worship of fear is true, although very low: and though not acceptable to God in itself, for only the worship of spirit and of truth is acceptable to Him, yet even in his sight it is precious. For He  regards men  not  as  they  are  merely, but as they shall be; not as they shall be merely, but as they are now  growing, or capable of growing, toward that image after which He made them that they might  grow to it. Therefore a thousand stages, each in itself all but valueless, are of inestimable worth as the necessary and connected gradations of an infinite progress. A condition which of declension would indicate a devil, may of growth indicate a saint.” (MACDONALD, The Beginning of Wisdom) Repreender-me-á o leitor por fazer tantas associações? Se o fio da meada se mantiver, não fique descontente; perdoai-me o gosto de fazê-las.
[116]            O que é bem diferente de meramente prever o futuro; esse, aliás, é o sentido zombeteiro com que os guardas açoitadores de Jesus falam de profecia ao incitá-lo a descobrir quem foi que lhe bateu. Conferir LIVRO DE URÂNTIA, doc. 184, 4, p. 1982 e Lc, 22, 62-64.
[117] Michael é, como o chama Huberto Rohden, o Cristo Cósmico, que existia antes do ego humano Jesus e continua existindo. Conferir BHAGAVAD GITA, p. 109, nota 84.
[118]            Que depois aderiu à rebelião de Lúcifer e jogou fora os avanços que conseguira fazer conosco até então, preferindo à evolução a revolução.
[119]            Nos mundos normais, cujo Príncipe não aderiu a uma rebelião, sua missão de aperfeiçoamento racial é uma continuação da evolução biológica havida durante o principado. Nos mundos isolados pela rebelião, como o nosso, embora o escopo do plano seja o mesmo, eles enfrentarão dificuldades mil para pô-lo em prática. Eva caiu no conto do vigário de “acrescentar o seu próprio pequeno esquema de salvação do mundo ao plano divino maior e de alcance mais abrangente”, misturando o bem ao mal; daí, no livro do Gênesis, o mito da árvore cujo fruto dava a quem o comesse o conhecimento do bem e do mal. (Livro de Urântia, 2007, doc. 75, p. 842) Seu plano reformador era o de antecipar e acelerar a miscigenação entre os homens da raça violeta, como ela própria, e os melhores representantes das demais raças. Isto estava previsto no plano divino, mas não no tempo em que Eva o praticou.
[120]            Refiro-me a Lao-Tsé, Buda, Zoroastro, Confúcio, os jainistas… Nada mal para um século apenas. Nos dois seguintes, surgiria a tríade Sócrates, Platão, Aristóteles.
[121] Autor do calculado terror vermelho, Lenin não poderá invocá-lo a seu favor ante os Anciãos dos Dias, não vai colar. É uma ironia que seu corpo continue preservado em Moscow, enquanto sua alma, se definitivamente iníqua, pode ter deixado de existir.
[122] Procurem estudar a ética da autenticidade, de Charles Taylor. Descubra o que você (e mais ninguém) pode fazer. Seja sincero consigo em meio ao diálogo.
[123]            Uma bela passagem do Corão lembrou-nos do Supremo: “E, para cada um há um rumo, para onde Ele o faz voltar-se. Então, emulai-vos, pelas boas ações. De onde quer que estejais, Allah vos fará vir, a todos. (…).” (CORÃO, II, 148) Platão não fica atrás: “Sócrates – Afirmaremos que nosso corpo é dotado de alma? Protarco – É o que dizemos, sem dúvida. Sócrates – E de onde, Protarco, a receberia, se o corpo do universo não fosse animado e não possuísse os mesmos elementos que o nosso, e, a todas as luzes, ainda mais belos?” (PLATÃO, Filebo) Vários outros exemplos haveria, tanto em textos sagrados quanto em filosóficos. A noção de uma evolução de Deus no tempo, porém, que é um traço essencial do Supremo, quem a afirmou com mais clareza foi Hegel, como dizemos a seguir.
[124] Tomás de Aquino rejeitou a demonstração de Anselmo porque não aceitaria que o ser máximo em que podemos pensar devesse necessariamente existir, podendo tratar-se, achava ele, de um mero ente mental. Ocorre que o ser máximo equivale ao necessário, e o necessário necessariamente existe, como ele aponta na terceira de suas famosas cinco vias. Tomás de Aquino não soube discriminar, na explanação compactada de Anselmo, o que era conteúdo mental e o que juízo auto-evidente. Como diz Husserl, “não se deve confundir os pressupostos psicológicos ou componentes para a asserção de uma lei com os momentos lógicos de seu conteúdo.” (HUSSERL, p. 52, tradução minha da versão inglesa) Imagino que Tomás tiraria proveito lendo a versão de Kurt Gödel ao argumento ontológico, explicado (em português) por Nelson Gonçalves Gomes. Gödel define Deus com a interseção de todas as propriedades positivas. Para uma demonstração que fiz da via ontológica usando os termos finito e infinito, ao invés de contingente e necessário, ou intermediário e máximo, ver LOURENÇO, 2010.
[125]            Esse é um período histórico cuja compreensão não é fácil, e a cortina de fumaça que lhe jogaram, em primeiro lugar, Marx, simplificando o evento como a ascensão burguesa sobre a nobreza, prévia necessária para a luta de classes final entre burguesia e proletariado; mas também escritores com teses sobre sociedades secretas que teriam dirigido totalmente os acontecimentos, só prejudicam seu entendimento. Se alguém souber, se é que ele existiu, quem foi o agente histórico por trás da revolução francesa, dirigindo-a (e não apenas influenciando-a) para, embora com revezes, controlar o desenrolar dos acontecimentos, avise-me por favor.
[126]            A tese de que a sociedade dos Illuminati teria infiltrado a maçonaria e dirigido a revolução francesa tem um forte contra-argumento: ela foi fundada na Baviera, não na França, e demoraria mais anos do que sua fundação em 1776, pouco antes da revolução, lhe dava para controlar lojas maçônicas francesas.
[127]            Paul M. Bessel avalia que apenas nove, o que equivale a dezesseis por cento, dos delegados que assinaram a Declaração de Independência eram maçons. Conferir em: http://bessel.org/foundmas.htm.
[128]           Como não é porque George W. Bush fosse cristão que ele guerreou o Iraque. Outro presidente cristão poderia ter agido diferente. Mas Osama Bin Laden e os membros da Al-Qaeda atacam os EUA porque são membros da Al-Qaeda. E enquanto tais, prosseguirão fazendo-o. Uma das características do agente histórico, como o concebe Olavo de Carvalho, é a capacidade de determinar a ação de seus membros segundo seus objetivos de longo prazo. O Estado, por isso, só por analogia pode ser chamado de um agente histórico. O Estado é um dos instrumentos da ação histórica, não seu indutor. É claro, não obstante, que o consenso de dois partidos alternando-se no poder em torno de um projeto duradouro, por exemplo, a educação pública de qualidade e obrigatória, fará parecer que o estado é o autor do projeto. É o que se chama de política de estado. Mas isso não passa de analogia. A Al-Qaeda tem objetivos históricos claros: eliminar a influência ocidental em países muçulmanos, destruir Israel e estabelecer um califado islâmico. Como não conseguiu praticá-los controlando o processo de execução até seu desenlace exitoso, não praticou, segundo Olavo de Carvalho, e pelo menos até agora, ações históricas. A chamada “revolução do jasmim” pelos países muçulmanos não pode ser atribuída, como uma fase de seu objetivo de estabelecer um califado islâmico, a Al-Qaeda. Outro é o agente histórico por trás dessas mudanças. Parece, mas ainda não ficou evidente, que a Irmandade Muçulmana, apoiada por ricaços ocidentais, controla o processo. [129] Não esquecer também as maquinações intra-maçônicas do sr. Philippe Egalité d’Orléans, 171 mor da revolução. Conferir Robison, 1798, p 216-221. Que
[130]            Um erro do marxismo é crer que a burguesia age em conjunto. Na realidade, os empresários são o grupo social mais disperso. Os trabalhadores assalariados têm sido, por duzentos anos pelo menos, mais organizados que seus empregadores. Sacerdotes e militares, de resto, sempre foram mais coesos do que o empresariado.
[131]            Fala-se aqui de sociedade, quando na realidade quem se relaciona com o Pai são as pessoas. No entanto, pode-se dizer que uma sociedade melhora sua relação com Pai quando há mais pessoas se relacionando bem com Ele e quando elas conseguiram também vazar num mito mais propício a experiência religiosa autêntica suas próprias experiências, além de passar sua sabedoria a pupilos logo abaixo na escala de progressão espiritual.
[132] Mas que em nada prejudica a categoria sociológica; ao contrário, realiza-a ainda mais.
[133] Nelson Rodrigues, o “flor de obsessão”, disse que os “professores, os sociólogos, os sacerdotes, os jornalistas, os políticos” inventaram o “poder jovem” dos anos 60, que se estende, embora com menos intensidade, até o século XXI, inventaram a idolatria do jovem e, completo eu, a transferência de responsabilidade para que salve o mundo – responsabilidade a qual a ninguém deveria pertencer, nem a Jesus, uma vez que sua proposta de salvação, ou seu reino, como precisou chamá-la, “não era desse mundo” –, pobre do jovem!, e sem que ele próprio tenha movido “uma palha para tornar-se poderoso”. Conferir RODRIGUES, 1994, pp. 114-115. Depois sentirá a dor de viver como seus pais, e talvez ache que quem lhe deu “a idéia / De uma nova consciência / E juventude / Tá em casa / Contando vil metal,” como diz a música de Belchior, maravilhosamente interpretada por Elis Regina.
[134] Se bem que às vezes o presidente precisa falar grosso para fazer valer sua autoridade de comandante em chefe das forças armadas. É famosa a crise entre Harry Truman e o general Douglas McArthur, a respeito da qual o presidente falou: “I fired him [MacArthur] because he wouldn’t respect the authority of the President… I didn’t fire him because he was a dumb son of a bitch, although he was, but that’s not against the law for generals. If it was, half to three-quarters of them would be in jail.”
[135] Essas três castas Platão as enxergou, nomeando-as, mas apenas de passagem, no Timeu, 24AB.
[136] Se você tiver de ler Lenin entretanto, leitor, faça-o, não procrastine.
[137] “Afinal, é aquilo em que se crê, mais do que aquilo que se conhece, o que determina a conduta e rege as atuações pessoais. O conhecimento puramente factual exerce uma influência muito pequena sobre o homem mediano, a menos que esse conhecimento seja emocionalmente ativado.” (LIVRO DE URÂNTIA, doc. 99, p.1090) Daí a importância maior de símbolos do que de conceitos para a ação política. Saul D. Alinsky lembra a seguinte frase de Franklin Delano Roosevelt: “OK, you have convinced me. Now go out and bring pressure on me.” (ALINSKY, 1971, Prologue XXIII) No caso, Roosevelt não estava suscetível a entender, mas a ser pressionado para agir. Ele parece pedir que a delegação de reforma que o abordou conseguisse primeiro unir simbolicamente um grupo de cidadãos e então mobilizá-los em torno da reforma proposta. Rosenstock-Huessy, falando sobre a revolução britânica do século XVII e do papel que a religião teve, diz: “Now the political value or force of religion is its endlessness. Politics, being a process of realization, must be driven by the force of some unlimited Faith. Only the infinite can move the finite. There lies the fatal superiority of Faith over reason. The Faith of the British sounds less clearly in the challenging outcry of “Britannia Rules the Waves” than in the refrain of the English missionary hymn: “God is working his purpose out As year succeeds to year; God is working his purpose out, And the time is drawing near. The time that shall surely be, When Earth shall be filled With the glory of God As Waters cover the sea.”” (ROSENSTOCK, 1993, pp. 331-332) “Ao influenciar a mente evolucionária em expansão, o poder de uma idéia não repousa na sua realidade ou razoabilidade, mas antes na vivacidade e na universalidade da sua aplicação pronta e simples.” (LU, 2007, doc. 87, cap. 4, p. 961) Rosenstock diria que o fogo vivo de Heráclito é melhor que a esfera do ser de Parmênides. Ne perenni cremer igne.
[138] Como é tolo imaginar que uma influência política possa ser sustada por seu enquadramento legal! No desenrolar do escândalo do mensalão, alguns brasileiros caíram no engano de achar que podiam sustar a influência petista com uma nova Constituição. “A influência não pode ser afastada pelo direito, apenas por outra influência”, ensina Rosenstock. “O vocabulário da política tem que lidar sempre com os intangíveis que movem o coração e a mente de um governante, sem sequer serem mencionados pelo direito do lugar. Os advogados da Inglaterra pré-revolucionária haviam erigido o direito contra aquelas influências secretas da corte que tornavam o poder do rei arbitrário. Eles tentaram afastar a influência e agiram através do direito apenas. Mas a influência é um fluido, enquanto o direito é um corpo sólido. Gelo e água não estão mais estreitamente relacionados do que a política e o direito. A influência não pode ser afastada pelo direito, apenas por outra influência. De outro modo a origem de uma nova lei seria impossível.” (ROSENSTOCK, 1993, p.343, tradução minha)
[139] Cumpre dizer, entretanto, que ele a administrou com competência e carisma ímpares.
[140] Todas as vezes que o LU usa o substantivo revolução, sem contar o sentido do movimento de um astro em redor de outro, são denotando algo ruim.
[141] Hegel, tão bom em alguns pontos, e tão complicado em outros, foi bom aqui: “A religião e a moral, como essências universais em si, têm a característica de estar presentes na alma individual em conformidade a seus conceitos e, portanto, verdadeiramente, embora possam não estar representadas ali por inteiro e aplicadas a condições completamente desenvolvidas. A religiosidade, moral de uma vida limitada – de um pastor, de um camponês – tem infinito valor em sua concentrada limitação interior. Ela tem o mesmo valor que a religiosidade e moral de um intelecto instruído e de uma existência com um amplo círculo de relacionamentos e rica em atividades. Esse enfoque interior, essa região simples das reivindicações da liberdade subjetiva – o lugar da vontade, da resolução e da ação, conteúdo abstrato da consciência, onde estão encerrados a responsabilidade e o merecimento do indivíduo – permanece intocada. (grifo meu) Está bastante desligada do estrépito da história do mundo (…)”. (HEGEL, 2004, p. 85)
[142] A apresentadora Xuxa e alguns congressistas bem gostariam disso.
[143] Compreenda-se força aqui não apenas no sentido da violência física, mas também no da coação psicológica.
[144] Está na hora de vermos o lado do bom do “jeitinho” brasileiro, nosso “common sense”, como disse Luiz Felipe Pondé. O brasileiro é capaz de conseguir soluções ótimas devido à sua versatilidade.
[145] Nas eras de luz e vida, sobre as quais falaremos mais abaixo, o homem vive em média quinhentos anos. Dá para imaginar conviver com um antepassado seu que viveu a era das Grandes Navegações? Claro que é mais provável que seu antepassado fosse um camponês que mal sabia que as Grandes Navegações estavam acontecendo, mas, de qualquer modo, ele seria um registro da época. Pois então, nessas eras a participação imaginativa no passado comum do povo será menos precária. Saberemos com uma memória viva – literalmente — por que uma coisa foi feita de determinada maneira e não de outra, e para onde estamos indo.
[146] Isso vai sem crítica. Creio que essa característica da Igreja Católica auxilia em outros aspectos, como na formação de uma burocracia estatal competente e devotada. [146B] Não posso deixar de lembrar essas palavras de Louis Lavelle, que primeiro me lembraram das revelações pessoais do Ajustador do Pensamento, mas depois se me associaram melhor com a idéia de unidade, ao invés de uniformidade, da irmandade espiritual: “Mas a verdade, que é comum a todos, produz em cada um deles uma revelação particular, e nós entramos em querela porque queremos que essas revelações se assemelhem e não que convirjam.” (LAVELLE, 2008)
[147] O ruim de usar a palavra pensamento é que se tende a associá-la com uma mera atividade mental. O chamado cartesiano para a era científica foi traduzido em português como “Penso, logo existo”. Mas o pensamento da fé não pára na mente, ele é o encontro do espírito divino residente no homem com a mente humana, que se buscam. É um pensamento compartilhado entre Deus e o homem.
[148]            Conferir Guénon, pp. 44-45.
[149] Ao menos ela impregna a vida política das nações com seus elementos de tolerância entre crenças doutrinais diferentes, “impregnação esta que escapa totalmente ao controle da própria Maçonaria e se torna, com o tempo, um princípio estrutural, que atua por si, pelo automatismo do hábito inconsciente e independentemente das intenções de quem quer que seja”. (CARVALHO, 1998, p. 179)
[150] Conferir L. U. doc. 79: 2.7.
[151]            “A justiça, que dá nome aos homens de bem.”
[152]            O conceito de troca implica um acordo de vontades entre as partes. As trocas primitivas, ou entre membros de clãs diferentes não submetidos a uma autoridade comum, não são contratos no sentido jurídico, justamente porque não havia direito. Mais do que hoje, essas trocas precisavam fundar-se na confiança de que ao se entregar um bem receber-se-ia sua contraparte.
[153] Quando o governo imprime papel-moeda a torto e a direito, ele age igualzinho a um falsificador de moeda. Porque o governo estará falsificando direitos, criando comprovantes de um direito inexistente. Daí a inflação galopante, dinheiro tomado pelo governo de seus cidadãos indevidamente. Nem toda inflação é ladroagem do governo, mas emissão desmedida de moeda é. Agora que a Grécia está indo à falência, com déficit público de 160% do PIB, cabe a pergunta: por que governos tomam dinheiro emprestado? Por que governos não são legalmente proibidos de emitir títulos da dívida pública? Quando empresas não podem pagar suas dívidas, elas vão à falência. Se o governo não pode pagar suas dívidas, a conta fica para o povo. Gastem os governos apenas aquilo que arrecadam. Neste sentido, leiam o texto “Entendam a crise da Grécia do ponto de vista da administração financeira”, de Stephen Kanitz.
[154]            Criticamos, agora elogiemos. A iniciativa de televizar as sessões do Supremo Tribunal Federal é frutificante para o debate jurídico e democrático em geral.
[155]            Fazendo como o dialético platônico, que “procede com seriedade e esforça-se por levantar o adversário, com mostrar-lhe apenas os erros em que ele incorrera, ou fosse por conta própria ou por má orientação de outros diretores.” (PLATÃO, Teeteto, p. 28)
[156]            Os professores Fernando Toller e Pedro Serna diriam trata-se de direitos que estão meramente em seu âmbito material, não no seu âmbito formal inclusive, quando então deveriam, em alguma medida ao menos, prevalecer. Conferir SERNA et TOLLER, 2000.
[157]            “Vós não podeis colocar a alegria espiritual sob a observação de um microscópio; vós não podeis pesar o amor em uma balança; vós não podeis medir os valores morais’(…)” (LIVRO DE URÂNTIA, doc. 196, p. 2095)
[158] Victor Cousin: “A reflexão é o teatro de combates que a razão trava consigo mesma, com a dúvida, o sofisma e o erro. Mas sob a reflexão há uma esfera de luz e paz, onde a razão percebe a verdade sem retornar sobre si, pelo simples fato de que a verdade é a verdade (…).” (COUSIN, 1853, pp. 64-65)
[159]            Concorda Joaquim Nabuco: “Enganar-se-á muito, porém, quem em qualquer arte quiser medir a força criadora, a concepção, pela perfeição da ferramenta ou pelo valor da técnica do tempo. Em nenhuma época a intuição jurídica de um Ulpiano ou de um Melo Freire perderá valor. Uma coisa, pertencente a uma ordem de espíritos, é a organização da vida jurídica da sociedade, e outra muito diversa, pertencente a outra ordem, é a análise ou a síntese dos elementos componentes do direito.” (NABUCO, 2007, p. 46)
[160]            Omitem-se aqui os parênteses com as palavras gregas acompanhadas de suas traduções no alfabeto latino, uma vez que nossa versão digital do livro não abriu os caracteres gregos.
[161]            Na cultura grega clássica, Homero; os sofistas e Péricles; Heródoto, Sócrates, Platão; e Aristóteles — inclua-se este também no grupo anterior — poderiam ser considerados representantes pessoais dos discursos poético, retórico, dialético e lógico.
[162] Ao dizer isso, discordo do Yoga-Bhashya — ou talvez de sua tradução apenas — o comentário aos Yoga-Sutras, quando diz que “in a dream the-things-to-be-remembered are imagined, whereas in waking the-things-to-be-remembered are not imagined” (The YOGA-SYSTEM OF PATANJALI, 1914, p. 31). A diferença específica entre o sonho e a memória no estado desperto não é a falta de imaginação no segundo. Seria melhor dizer que a memória no estado desperto não fantasia em cima do material que lembra. Em ambas as funções, entretanto, se imagina.
[163]            Conferir CARVALHO, 1996, cap. III.
[164]            Efetiva-se no processo judicial o que Olavo chamou de princípio da sucessão dos discursos dominates, apenas porém entre os discursos retórico e dialético – este, embora faça uso do lógico, prevalece-lhe, como tentaremos mostrar a seguir. O discurso poético, majoritariamente poético, como já dissemos, não chega a ingressar no processo, embora, obviamente, possa ser usado como recurso pelos outros dois. Do início da ação em que autor e réu esposam suas pretensões em teses que devem ser persuasivas passar-se-á para a decisão do julgador, que ponderou as teses e escolheu a melhor, mais razoável, ou aceitou apenas em parte o pedido formulado. Terá havido uma sucessão de discursos dominantes, pari passu com, há de se esperar, uma “escala de credibilidade crescente.”  (CARVALHO, 1996, p. 39)
[165]            Ele provavelmente aprovaria a definição, embora não restrita à seara jurídica, de Mário Ferreira dos Santos para lei: “a expressão constante de uma regularidade de ordem de dependência essencial da consequência à antecedência.” (SANTOS, 1962, p. 91) Uma vez verificada a adequação do fato à hipótese constante da norma – ou seja, a antecedência –, dar-se-á a consequência que ela manda.
[166]            Uma vez assumido um princípio, qual seja, o de que a lei posterior derroga a anterior, ou o de que a lei especial tem prevalência sobre a genérica, a conclusão seguirá inabalável.
[167]            Este tema rendeu em parte a réplica de Kelsen ao livro ‘The new science of politics’, de Eric Voegelin.
[168]            Conferir também CUNHA, II.
[169]            O discurso dialético, próprio do julgador, “tende a uma certeza máxima mas não pode obtê-la.” (CARVALHO, 1996, p. 67)
[170]            Reencenações de crimes é o mais próximo a que o direito chega do método científico.
[171] Aristóteles o repete exaustivamente nos Analíticos Posteriores. De resto, ninguém o contesta. Diz ele também: “A matemática estuda as causas, não as coisas.” Conferir capítulo 13, §15.
[172] Motivado ou não por uma indisposição pessoal, Jacobi acertou em cheio ao dizer: “Sem a pressuposição [da “coisa em si,”] não pude entrar na filosofia de Kant, mas com ela não pude permanecer ali”.
[173] Eixo dos pontos-de-vista individualíssimos, como disse Ortega y Gasset (talvez não com essas palavras). Conferir La doctrina del punto de vista.
[174] Se não era isso que ele tinha em mente ao falar da norma fundamental pressuposta, então se trata de um axioma que ninguém sabe, ninguém viu, precisamente o contrário do que deve ser um axioma. Tratar-se-á de feitiçaria. Logo tu, positivista? …… “Os fracos condescendem em tomar resoluções, mas os fortes agem. A vida não é senão um dia de trabalho — faça-o bem. O ato é nosso; as conseqüências são de Deus.” (LIVRO DE URÂNTIA, doc. 48, 7, p. 556)